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Quantas índias há na Índia? Quantos brasil no Brasil? Quantos mortos entre os mortos

sábado, maio 29th, 2021

Quantas índias há na Índia? Quantos brasis no Brasil? Quantos mortos entre os Mortos?

Severino Vicente da Silva

O milênio que foi tão esperado como a possibilidade de completar a felicidade, a grande Era de Aquarius, mostra-se mais como o tempo das confusões. Todos parecem confundidos e as crenças religiosas, as mais diversas, invertem os sinais. Houve um tempo, no começo das revoluções, aquelas primeiras no século XVI, que levou as religiões a serem vividas no silêncio das casas enquanto a ciência ganhava as ruas, com publicidade alegria temerosa. Sim, pois certas tendências religiosas uniam-se ao espírito científico para transformar os processos religiosos contra as “bruxas” e outros dissidentes, em alvo de ações jurídicas e sanitárias. Algumas decisões e políticas sanitaristas uniam-se a conceitos religiosos tradicionais que puseram muitos nas franjas da sociedade de então. Os cintos de castidade, tão propalados em sua existência medieval, foram bastante comuns no tempo científico para evitar que rapazes ficassem tuberculosos pela prática do onanismo, condenado em textos sagrados, ou as relações homossexuais, também vistas como doenças até recentemente.

Conceitos religiosos atuaram sempre entre os cientistas. Religiosidades praticadas por gente que se diz científica, se dizem milenares, escudadas em protocolos que remontam ao tempo de Ramsés II. Isso continua sendo experimentado em reuniões de gente “científica” que reclama daqueles que rezam a Salve Rainha ou entregam oferendas aos Orixás. São muitas as comunidades que se formam e se fortalecem neste milênio em torno de ideias não científicas, ideias são divulgadas pelos meios técnicos e científicos presentes em residências que as podem pagar. Aliás, este novo milênio é o milênio em que ficam cada vez mais separados os que podem pagar e os que nada podem possuir. O fosso que separa os pobres dos ricos está cada vez mais largo e profundo, profundidade que cresce com o tamanho dos muros que deixam claro quem é quem, e é quem tem. O que seria o milênio da fraternidade tem parecido mais com o milênio da separação. “Pobres sempre os tereis”, frase atribuída ao inspirador do cristianismo parece ser cada vez mais verdadeira, pois que as ciências, a economia é uma delas, vive a aprofundar reflexões e práticas que justificam e aprofundam o fosso e erguem os muros. Como ouvi, em uma reunião no Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, o meu colega, amigo de sonhos, Yves Morpeuax, “além dos muros físicos, há os invisíveis, e esses são os que mais separam, pois o fazem na mente.”

Quando estivermos, ou não estivermos, assando milhos nas milenares, cada vez em menor número,  fogueiras de juninas ou de São João, no Brasil já teremos ultrapassado o meio milhão – 500.000 – mortos pela Covid19, e muitas dessas mortes foram resultantes da rejeição à ciência médica em nome da ciência econômica; outras, ou as mesmas, resultantes da pregação religiosa daqueles que “controlam a vontade de Deus”, nos templos e nas emissoras de rádio e televisão; a maioria desses atingidos mortalmente pela atual peste, eram pobres. E os pobres são a maioria entre os mortos por serem a maioria entre os vivos. E não apenas no Brasil; mas em todos os países, como nos confirmam as notícias originadas da Índia, elas nos dizem que o Rio Ganges tem recebido muitos corpos daqueles que não podem comprar lenha para cumprir o ritual religioso. E, note-se, a Índia é produtora de princípio ativo para as vacinas. Quantas Índias há na Índia?   

Tempos no tempo das pestes

segunda-feira, abril 19th, 2021

Tempos no tempo das pestes

Prof. Severino Vicente da silva

Entramos na vida quando ela já se desenrolava nos espaços e no tempo através dos tempos. Somos membros dessa incessante corrente que se renova a cada instante, somos como um instante, mas alguns de nós escapam de ser apenas um instante. O instante é tão passageiro, como os quase cem anos que agora podemos viver. Houve um tempo que este instante era menor para todos, mesmo os mais aquinhoados pela fortuna, poucos ultrapassavam a marca dos cinquenta anos vividos. Era um tempo de vida pequeno, vinte, trinta, quarenta anos. Tudo era tão rápido que era uma bênção divina ver os filhos dos filhos, ser avô, ser avô. Morria-se com mais facilidade, seja pelo teor violento da vida, como ensinava Huizinga, seja por não ter tido tempo de afeiçoar-se aos filhos, pois que eles morriam muito cedo, como ocorreu a Montaigne.

As guerras foram, ainda são, companheiras permanentes dos homens. Eram muitos os que morriam de espada em punho enquanto outra espada transpassava seu corpo. A vida era acompanhada diariamente pela morte, quase uma simbiose. Matava-se em todos os lugares, ainda hoje é assim; mas na bela Florença renascentista, os Medici foram atacados dentro de uma igreja, durante uma cerimônia, mas o que não foi morto perseguiu aos que tentaram mata-lo e os enforcou, deixando seus corpos apodrecerem, pendurados nos janelões da casa da Senhoria. O jovem Leonardo da Vinci aproveitou a oportunidade para registrar as expressões dos mortos, quase como os fotógrafos dos jornais do século XX faziam, o que atraia muitos leitores para olhar “a vida como ela é”, e como se acaba para todos. As fotografias permitiram que se guardasse a última visão do defunto antes de seguir para o cemitério. Guardava-se o último retrato como relíquia familiar. Era um bom costume da época vitoriana que se praticava ainda na sexta década do século XX em algumas cidades do Interior do país. Matou-se muito no século XX, em intermináveis guerras para acabar com as guerras, para acabar com a exploração, criar um mundo novo, e foram tantas as razões criadas para matar; matava-se para defender a vida, estabelecer um código, um projeto que garantisse o direito de nascer, viver, morar, trabalhar, ter uma família, receber proteção, ter um país, receber educação, receber cuidados com a saúde.

O final do século XX foi o tempo da criação dos direitos, agia-se como se fosse um esforço para chegar ao convencimento de que os seres humanos podem ser bons, felizes e que podiam comprometer-se em jamais voltar a produzir tantos sofrimentos, como os inventados nos diversos campos de concentração de gente posta a trabalhar até à morte, ou mesmo simplesmente postos lá para morrerem.

Talvez um dia se aprenda que os que fazem a história não caminham sempre na mesma direção, na mesma velocidade, com mesmo entusiasmo. E há sempre, ao lados dos construtores de possibilidades para se viver de uma maneira menos violenta, aqueles que preferem que tudo continue como estava, pois as mudanças previstas implicam em perdas para si: além disso, criar um mundo novo acarreta muito trabalho, muito esforço, melhor deixar como estava, um mundo em que alguns poucos poderiam viver um pouco mais que o restante da humanidade, pois deviam dedicar seu tempo para beneficiá-los, por isso melhor deixar como estava: muitos sofrendo para a alegria de alguns. E se morressem nessa tarefa?

Provavelmente esse modo de pensar pode explicar porque não foi fácil descolonizar os povos e nações asiáticas e africanas. Após a guerra contra os nazistas, os europeus não perceberam que continuaram a tratar os não europeus de modo similar ao tratamento que os seguidores de Hitler, e assemelhados, dispensaram aos ciganos, aos homossexuais, aos judeus, aos comunistas, aos católicos e a todos que não eram eles mesmos. O pós-guerra, ao mesmo tempo em que parte da humanidade pretendia criar um mundo novo, os “costumes comuns” foram e continuam sendo um impedimento para este novo mundo. O Zé Ninguém não escutou William Reich e permaneceu forte na defesa de seu mundo de inveja, desejos irrealizados, e amor à morte.

Uma das guerras do século XX foi a guerra de libertação do povo do Vietnan, primeiro para afastar a França e, depois, os Estados Unidos da América do Norte. Esta guerra marcou o fim do encanto do americam way of life, ideologia que conquistou corações e mentes, vendendo um paraíso com os desenhos de Disney, o riso de Doris Day enquanto escondia as Vinhas da ira. O general Westmoreland, comandante das tropas americanas no Vietnan, a princípio dizia que “aquelas pessoas não tinham sentimento em relação aos seus mortos”, mas logo compreendeu que se não conquistasse os corações e as mentes daquele povo, a guerra estaria perdida. E a perdeu enquanto uma juventude celebrava uma era nova que seria de paz, a Era de Aquarius. Mas aqueles jovens de 1968 são sessentões hoje, e olham o mundo que herdaram e o que estão deixando em herança. O que faz a diferença entre 1968 e 2021, o que diferencia a vida neste terceiro milênio do modo de vida no século que passou e nos séculos todos que foram passados?

Todos concordam que materialmente estamos melhor situados que os avoengos, pois mais pessoas podem dormir mais tranquilas sabendo que a comida do dia seguinte está garantida, embora haja muita gente, mais da metade da população da terra, morrendo de fome nas esquinas de nossas cidades, da cidade de nossa moradia. Mas agora temos informações sobre o que acontece em todas as partes do globo, sabemos do que os movimentos da natureza, cada vez mais em choque com as criações culturais, reduzem casas, carros, estradas – de barro, ferro ou cimento e asfalto – à lama, forçando-nos a refletir não apenas sobre as condições dos homens, mas a condição desses homens e mulheres nos locais em que vivem, e que por eles foram construídos. Como as fortalezas, os castelos e os palácios protegiam os que diziam proteger os povos que mandavam à guerra, eram protegidos com guardas a impedir o acesso dos camponeses e artesões aos espaços das festas das cortes onde se praticava regras de convivência e o aperfeiçoamento das relações, também hoje há muros invisíveis que aperfeiçoam tal separação, fazendo que cada um saiba qual o seu lugar e seu papel na sociedade. Essa ordem segue padrões tão aperfeiçoados de separação que nem notamos, pois que somos ensinados a não perceber as diferenças, uma vez que os cortesões que fazem a crítica, quase sempre condenatória da espúria situação da maior parte da população, a fazem ao lado dos organizadores do invisível muro que separam os homens. Não notamos, os muros que, além de invisíveis são fluidos, como nos explicou o sociólogo polonês.  Tornam próximo o que está distante, um desvio ótico, como uma vara dentro de um lago ou rio. Uma ilusão de ótica, a ótica social e política.

Neste terceiro milênio pode ser que venhamos a viver um mundo falso que não precisa de muros a separar, exceto quando se quer proteger objetos, essas criações culturais que denotam poder, riqueza, avidez, ganância, beleza conceitual e tudo que auxilia a explicitar a separação.

Como em épocas anteriores estamos vivendo uma pandemia, uma reação da natureza à forma de nossa organização sobre o planeta e de nossa relação com os demais seres vivos, e mesmo os inanimados, e, como nos séculos anteriores, muitas são as mortes. Assusta a quantidade de mortes que vem ocorrendo diariamente; em algumas regiões do país, morre-se mais que nascem pessoas. Em nossa país será que, em algum momento, morreram tantos de uma só vez? Terá sido assim em Palmares, o Quilombo? E na Cabanagem? E no Arraial do Bom Jesus em Canudos? Na seca de 1877? Na seca de 1915? Na seca de 1970? Mas essas foram mortes distantes, no meio do mato, nos sertões, nas beiradas dos rios, mortes que soubemos depois, que estão nos livros de história ou literatura. Agora temos a morte que soma com a ocorrida na vizinhança, na própria família. E, como outras mortes, essas poderiam ser evitadas caso fosse outra a conformação da sociedade.

O vírus, Corona 1919, está a matar por razões semelhantes ao Cólera em 1864, ao Aedes aegipti que tem a Febre Amarela, o Dengue, a Chincungunha: a razão da concentração de riqueza de um lado e a dispersão/concentração de pobreza de outro. Em todos os casos, como na praga dos primogênitos do Egito, para que o filho do faraó morresse foi necessário a ocorrência da morte de muitos filhos dos que não eram faraós. Quantos filhos dos pobres devem morrem para que se morra o filho faraó?

O que diferencia a atual situação das ocorrências nos séculos anteriores, é que agora acompanhamos imediatamente o fato e as mortes, não é necessário esperar que alguém escreva um livro de história que, como sempre, contará apenas uma parte dos acontecimentos com a visão que se deseje fixar. Mas as informações chegam tão rapidamente e em tal quantidade que elas são regurgitadas, são negadas, são apagadas. E os que estudam a Psique aconselham a procurar outras informações para que não se perca a saúde mental, não se morra espiritualmente.

Daniel Defoe, escreveu o Diário da Peste, que ocorreu na Inglaterra do século XVII, tendo dela sobrevivido. Utilizando depoimentos dos seus contemporâneos nos mostra que eles não tinham ideia de onde vinha a doença e tomaram medidas de restrição social, aprisionando em suas casas os doentes que eram obrigados a conviver com o enfermo e com os ratos e suas pulgas transmissoras. Morreram muitos, e valas foram abertas para a incineração dos cadáveres. Lentamente os homens vão aprendendo que os bacilos, os vírus que provocam as diversas pestes, eles não morrem, mas como que se resguardam para quando surgirem outras oportunidades para o espetáculo mortífero e mortal.

Mas se existem as pestes físicas que destroem as sociedades em sua população, há pestes que destroem as nações em seu caráter, em sua moral, em sua essência, como nos ensina Camus, a peste da traição, da colaboração com a morte. Em todas as pandemias e epidemias sempre surgem os pestilentos da mentira, do ódio, da incompreensão, do esforço para evitar que s humanidade se aperfeiçoe.

Nestes dois anos de convivência com o Coronavírus 2019 temos tido conhecimento e experimentado esses dois tipos. Ambos se tornam mais poderosos com a ignorância, com o conforto que elimina a angústia, a companheira dos que procuram o saber. É o conhecimento que derrota, ao menos provisoriamente, as causas das pestes.

Drama 6 – O que aprendemos no distanciamento social

terça-feira, abril 14th, 2020

O que estamos aprendendo nesta experiência de distanciamento social, empurrados para dentro de nossas casas, forçados a nos olhar diretamente por um vírus? Uma experiência diversa daquela a que nos acostumamos e formos ensinados: sair de casa, todos os dias, e só voltarmos quando estivermos tão cansados de aprender para trabalhar, e trabalhar para ganhar dinheiro e ganhar dinheiro para comprar, o comprar o que nem sempre precisamos, mas precisamos comprar para que vejam que compramos e, se compramos é porque recebemos dinheiro pelo trabalho que fazemos a cada dia fora de casa.  Foi assim que aprendemos, por isso não contamos o trabalho de casa como trabalho, pois ele não é transformado fisicamente em dinheiro. Por isso o trabalho de lavar pratos, lavar a roupa, passar a roupa, guardar a roupa, preparar a comida, limpar a casa, não é visto como trabalho. Mas agora, que “não se está fazendo nada”, pode-se aprofundar a ideia tradicional de que trabalho é aquilo que se faz com um sentido, uma direção.

O trabalho gera a riqueza da vida: gera a limpeza que gera a saúde, gera a satisfação que gera o sorriso de agradecimento. Mas perdemos esse sentido do trabalho, em algum momento foi tirado este sentido. Talvez quando foi dito que ele é maldição. Tornou-se maldição porque perdeu o sentido da alegria criadora, regenerativa da vida. Interessante como vejo nas redes sociais que há muita gente trocando receitas para a produção de comida. Algumas pessoas estão descobrindo a alegria de preparar a comida para os familiares.   

Nesse período em que fomos chamados a ficar em casa, destoando do que nos foi ensinado, podemos aprender que trabalho não é o movimento mecânico do obreiro (operário) que opera a máquina sem, às vezes, percebê-la. Não precisa, tudo que ele faz é ajustar-se ao movimento da máquina, seja ela de escrita, de produção de tecido. Não é um movimento criativo e, se temos um cérebro que nos permite criar, ao realizar tarefas que apenas pedem a nossa capacidade mecânica, somos enfiados no mundo da infelicidade. Nos tornamos infelizes quando não exercemos o que nos difere dos demais animais, quando não exercemos a nossa capacidade de criar. Ao ficarmos em casa, nesse distanciamento social, podemos reaprender a contar histórias para nossos filhos, e nossos pais, e para aqueles que estão no mesmo espaço. E aprendemos a ouvir. Também aprendemos que o que fazemos e útil e valoroso, tem valor; embora não gere dinheiro gera riqueza, porque gerou uma possibilidade de alegria.

Muitos ainda não entenderam o sentido maior de ficar em casa, confinado, por algum tempo. Claro que é difícil para quem foi ensinado que tem que sair de casa para produzir riquezas que não irão experimentar, entender que ficar em casa neste momento, é um ato social e solidário, pois está salvando a vida de outras pessoas. Mas como entender que isso é bom se a pessoa foi ensinada que ele deve trabalhar para garantir o seu sustento e não o de toda a humanidade? Pois é, não lhe disseram que a vida é um ato cooperativo, que ninguém trabalha só para si, que o verdadeiro trabalho é para todos, não para alguns. Podemos aprender muita lições nesse pequeno período que fomos, tangido por um vírus, lançados de volta ao início. Temos a possibilidade de iniciar mais uma vez.

Mas, percebemos que há alguns que não nos querem em casa, nos querem na rotina dos gestos repetidos e repetitivos, querem que não descubramos. Redescubramos, a nossa criatividade, pois assim poderão continuar a nos tratar como máquinas. Não querem que saibamos que somos mortais. Sim, o vírus que nos ameaça nos diz que somos mortais. Se entendermos isso, poderemos os perguntar pelo sentido da vida para além do sal diário (sal(dia)ário) para os alimentos do corpo; querem que retornemos logo ao trabalho em suas fábricas e corporações para não notarmos que a vida tem como objetivo a felicidade, não a ação mecânica, não o divertimento, como nos dizem nas propagandas; a felicidade é conversar com as pessoas e não simplesmente  ver os monumentos. Ser feliz não é ficar três minutos olhando a Monalisa, ser feliz é criar a própria Gioconda.