Professora Zefinha, Presidente do Conselho de Moradores de Nova Descoberta, minha irmã

Que coisa que é a vida da gente, vida que a gente vive na direção da morte que é a renovação da matéria e ponto de reflexão sobre a vida. Hoje, no meio da tarde meu sobrinho telefonou para me informar que sua mãe, minha irmão mais velha, Zefinha, acabara de falecer. Foi decorrência de um problema renal, mas, de verdade, foi decorrência da vida. A morte é sempre uma decorrência da vida.

Agora, algumas horas são passadas e, depois de explicar para meu filho Isaac, de seis anos de vida, que sua tia tinha ido encontrar a sua Vó Maria, que ele lembra pelos retratos, fotografias de momento em que ele repousa no seu colo, ele disse, sério como um Buda Iluminado: tudo mundo morre. Mas tudo vive.

Pois bem, Zefinha e eu tivemos bons momentos juntos, algumas discussões, mas quase sempre fomos cúmplices. Ela sempre foi muito bonita, e sabia disso e, quando vivia a juventude, sempre deixou isso muito claro, apesar de recato que a educação severa de Seu João e Dona Maria exigia. Pois bem, Zefinha, quando casou com Sebastião – Tão – eu estava eu nos Estados Unidos, mas participei ativamente da cerimônia do seu casamento, pois que me mandaram um fita cassete (os mais jovens nem saberão o que é isso) com toda a cerimônia. Amas acompanhei Zefinha nos momentos em que se preparava para ir à maternidade de sua primeira filha, Luciana – tão bonita quanto ela. Depois vieram Alexandre, Catarina e Eduardo. Mas Eduardo ficou pouco tempo entre nós. Tão dizia que ele veio para alegrar os primeiros anos da velhice de papai.

Zefinha e eu tivemos uma aventura muito próxima, mas da qual nunca falamos um com o outro sobre essa experiência ocorrida entre os meses de agosto e outubro de 1973. Naquele final de agosto fui sequestrado pela forças do porão da ditadura. Sei que deve ter sido muito difícil para todos os que viviam na casa 1420 da Rua Nova Descoberta. Hoje sei que falamos pouco sobre essa experiência. Mas deve ter sido terrível aquela manhã de setembro quando Zefinha saindo para cumprir a sua tarefa de professora, homens da ditadura a sequestraram, em frente da nossa casa, cerca de sete horas da manhã. Ela estava com Luciana, mas a colocaram em carro, enquanto sua filha chorava e seus pais corriam para proteger a neta. Agora eles tinham dois filhos tomados pelos gorilas. Zefinha e eu, bem como Lia – minha outra irmã, sempre estivemos envolvidos com o Conselho de Moradores de Nova Descoberta – Zefinha foi presidente daquele que foi o primeiro Conselho de Moradores criado pela Operação Esperança, resultante da ação de Dom Hélder Câmara para recuperar o Recife que foi atingindo pelas águas da chuva e da cheia do Capibaribe em 1965. Algo dessa história será contada nas cartas de Dom Hélder, embora eu tenha visto que os nomes de minhas irmãs não foram bem decifrados pelos editores (chamei atenção para o fato, mas nós somos de Nova Descoberta, os editores não). Na prisão eu ouvi o murmúrio que haviam pegado uma mulher grávida, mas como foi à luz do dia e com os fregueses da mercearia de papai a tudo assistiram, era preciso ter cuidado. Assim, no murmúrio das celas, eu soube que Juaréz, que tinha recebido um colchão de palha para dormir, pois havia quebrado umas costelas dele no serviço da tortura, foi obrigado a ceder o conforto para a nova prisioneira. Zefinha estava grávida de quatro meses. Ficou dois ou três dias no DOI-CODI e depois foi liberada. Parece que queriam confirmar algo sobre mim, não tinham nada contra ela, mas talvez quisessem me pressionar, sei lá o que se passa na cabeça dos assassinos. Mas sobre essa experiência, o que sei é o que me contaram, Zefinha jamais tocou no assunto e eu sempre respeitei o seu desejo de não falar sobre isso. Nunca os gabamos ou lamentamos o que sofremos por nossas vidas dedicadas a abrir espaços para vidas mais sofredoras que as nossas. Zefinha foi uma dessas mulheres que, na simplicidade de seu viver, contribuiu enormemente para vencermos a ditadura que caiu sobre nosso país. Melhor dizer que não caiu, mas que foi construída pelo egoísmo que provoca dor, sofrimento e morte. Em plena ditadura, fizemos eleições para escolher a diretoria do Conselho de Moradores, e Zefinha era quem animava outras jovens mulheres a participar da organização social. Professora querida por seus alunos, recebia a confiança dos pais daqueles meninos e meninas que hoje são homens e mulheres. Tínhamos medo, mas o medo não nos teve.

Hoje, quando Alexandre Demiam me informou da morte de sua mãe, veio a memória de ele foi sequestrado no ventre se sua mãe, e muitas mulheres rezaram e fizeram promessa para que nada acontecesse a Zefinha nem ao seu filho e prometeram que ele se chamaria Damião, e por isso seu nome é Demian, dito por mim. E eis que Zefinha viajou no dia de São Damião, o seu protetor e protetor de seu filho, quando estavam na masmorra dos tiranos da minha pátria. Quarenta e cinco anos são passados desses momentos de tensão e de amor que é maior que se possa imaginar, e escrevo para que seus filhos Luciana, Demiam e Catarina e seus netos sintam crescer sempre o orgulho de terem vindo de cepa tão grandiosa e tão humilde, tão simples e dedicada à sua família e ao seu povo. Josefa Maria da Silva, Professora Zefinha, Finha, todos sabemos que em você, como em sua mãe, os poderosos foram depostos e, em vocês, os humildes são sempre louvados.

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