Os Sagrados Mistérios da Sexta feira Santa, é uma frase que escuto desde a minha infância, nas missas que assisti, foram poucas, e nas missas que participei, e foram muitas. Nunca gostei da expressão “assistir a missa”, nunca gostei de assistir algo, no sentido de ver que algo está acontecendo sem a minha participação. Nunca gostei de assistir aos sagrados mistérios da Semana Santa, como sempre recusei assistir a minha vida, esse mistério que começou faz sete décadas.
A Semana Santa começou a existir para mim quase no final da minha primeira década de vida, quando fiz a primeira comunhão, após ter sofrido grave acidente, no qual tive o fêmur direito quebrado. Ainda engessado, sofri a “gripe asiática” que dominou 1957. Esses dois acontecimentos marcam até hoje a minha memória. Tendo sobrevivido a febre, fui o único da família que a teve, fiz sozinho, na Capela Santa Terezinha, a primeira comunhão. Tem um retrato meu, de paletó e gravata brancas. Lembro que papai me levou a um alfaiate próximo ao cemitério de Casa Amarela. A minha primeira Eucaristia foi a minha inserção nos Mistérios da Semana Santa, o mistério da Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Anos depois, aprendi uma oração atribuída a Santo Tomás de Aquino, uma reflexão sobre o mistério, Ela começa assim: Meu Deus, te adoro dentro de mim. Não lembro o que vem mais, sei que está no missal dominical, mas o início da oração diz que Deus está dentro de mim, que sou templo, casa de Deus. Esse é um grande mistério.
Quando estudava teologia, em uma aula, ouvi do padre Diomar Lopes reflexões sobre por que pode ser exagerado o cuidado de não deixar qualquer partícula da hóstia – que pode ser chamada também de partícula, pois o corpo de Cristo está na Eucaristia e não se pode reduzir a Eucaristia em um pedaço de qualquer coisa, um objeto que significa, que carrega a eucaristia e, embora seja a eucaristia não é a Eucaristia. Este é o mistério.
A Eucaristia, vivida no mistério da grande Ceia, é algo além do pedaço de pão, do copo do vinho. O Mistério envolve o que vem antes da ceia, o ato de ter os pés lavados por aquele que é a Eucaristia. Envolve a ceia, o partir e repartir um pedaço de pão para que todos que recebem desse pão, e também bebem o copo de vinho, todos no mesmo copo. O pão e vinho tem que ser para todos. O Mistério envolve o que vem em seguida, a prisão, o sofrimento, o escárnio, o olhar zombeteiro, as lágrimas dos que podem estar a começar a entender. Não é entender o mistério, o mistério jamais será entendido. O mistério é vivido. Como entender que Deus está dentro de mim? Como entender o sofrimento que antecede a morte?
Dizemos que na Semana Santa é a semana para refletir sobre a paixão e morte de Jesus, como se apenas naquela semana ele estivesse em paixão, mas ele esteve em paixão todos os dias de sua vida, ele sempre foi apaixonado, a vida é a paixão e deve ser vivida com paixão e com compaixão. Existe a tradição que uma mulher, Verônica, que se aproximou e, em gesto de compaixão, enxugou o suor e sangue que corria no rosto daquele apaixonado. E os dois trocaram olhares de compaixão. Sem palavras, só gesto e olhar. Um mistério, essa mulher que surge e desaparece, e permanece. Quanto amor no gesto, no fazer, no agir. Verônica significa vitória, a que vence. Verônica vence a dúvida e assume o Mistério que o que ela está vendo é mais do que o que ela está vendo. É o Mistério. Como é mistério o que aquela outra mulher, Madalena, aceita que o corpo que ela busca não é o corpo que ela busca, é o mistério que ela vê quando vê o corpo que já não pode tocar. Assim como Maria aceitou o mistério de ser a mãe de Deus. Tudo isso é o Mistério que Semana Santa.
Neste ano uma nova doença está marcando o mundo, e uma historiadora já nos disse que ela marca o final do século XX. Em uma postagem anterior escrevi que estamos vivendo a transição para uma nova civilização. Leila Schwarcz e eu estamos querendo entender o que se passa neste tempo, que está mudando a maneira de ver o que nos rodeia, estamos tentando explicar o fato humano, o que possível, pois o que é humano não é mistério. O Mistério é aceitar o Mistério, aceitar e viver apaixonadamente a vida, na certeza de esta paixão pelo amor, pela entrega, pelo serviço, pela aceitação da vida.
Este ano os templos estarão vazios de pessoas celebrando o Mistério da vida, mas o Mistério é vivido como Santo Tomas de Aquino nos disse: Meu Deus, eu te adoro dentro de mim.