O cuscuz do rei
Prof. Severino Vicente da Silva
Aproxima-se o final de 2022. Já sabemos que nas eleições de outubro ocorreu a vitória das forças que pretendem evitar a catástrofe fascista que parece dominar o Brasil. Pouco mais que a metade do eleitores expressaram o desejo de viver em uma democracia; mas a outra parte dos eleitores decidiu não reconhecer o resultado das urnas e, dão continuidade ao projeto elaborado em algum escondidinho do Palácio do Planalto e, para lamento da nação, com o apoio implícito, envergonhado, de setores das Forças Armadas. Embalados em sonhos pessoais, afastam-se de sua função constitucional, soldados malformados moralmente, protegem os cidadãos que pretendem um golpe. O silêncio que permite os passos em direção a um golpe de Estado, é quase pior que o golpe. É que agindo como milícia, os comandantes das Forças Armadas destroem o que deviam proteger.
Acordei protegido por boas lembranças. Ao cultivar as boas experiências do passado estamos, em verdade, fortalecendo as esperanças nos tempos que virão. Pensei nas mãos de Mamãe preparando o cuscuz matinal, de como ela molhava com salpicos o fubá que vinha a formar o bolo que nos alimentava, com um pouco de açúcar e leite. Fiz a minha primeira refeição com a lembrança de Mamãe, e ouvindo Nilo Amaro e seus Cantores de Ébano, que Alexia encontrou para mim em sua sofisticada discoteca. Os Cantores de ébano era um grupo de cantores negros que usavam apenas as suas vozes, às vezes um violão. Morreram em um trágico acidente de avião. Pelo que lembro fizeram apenas um disco, um LP. E cantavam em celestial harmonia. Percebi que Caetano veloso, que um pouco mais idoso que eu, ouviu bastante os Cantores de Ébano, de tal modo que um dos seus sucessos foi cantando Felicidade, de Lupercínio Rodrigues com Luar do Sertão de Catulo da Paixão Cearense, no mesmo arranjo criado por Nilo Amaro. Na natureza e na cultura, nada se perde, tudo se transforma.
A gente bem que podia treinar em parar de dizer cultura popular brasileira e dizer apenas cultura brasileira. Chamar de cultura brasileira apenas aquela de verniz mais europeu e dar continuidade a uma separação a ser superada. Lima Barreto não foi aceito na Academia Brasileira de Letras, mas agora já temos bem sentadinho lá o autor de A Freguesia do Ó e da Refazenda. Estamos no Expresso 2222.
Para os cristãos, católicos em especial, está sendo iniciado o tempo que informa o que vem vindo, e vem vindo a Vida. Anuncia-se a chegada do Menino, o Menino Jesus que recebe visitas nos muitos presépios espalhados em igrejas, capelas, praças e casas. Mesmo nas casas mais ricas, nos bairros onde os pobres não entram, exceto para recolher o lixo, os presépios lembram que nasceu o rei a quem os reis sábios prestam honra e serviço. O Advento é o tempo de arrumar a casa interna, além da externa, para receber o rei que nasceu entre os animais e virá a ‘morrer’ entre os condenados. Vamos comer, com Ele, o cuscuz.