Archive for the ‘Vida’ Category

Drama 18 – Boa Morte e Pandemia

sábado, agosto 15th, 2020

Católicos, desde alguns séculos celebram a Ascenção de Maria, mãe de Jesus, a Nossa Senhora de inúmeros títulos, dependendo do devoto. Essa festa quase diz que Maria não morreu, mas isso lhe tiraria a humanidade. Assim. Em uma tradição brasileira, ligada ao povo negro que foi trazido da África, essa é a festa da Dormição de Nossa Senhora, conforme a tradição da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira, BA. Neste dia, nesse momento, de grave pandemia que mata cerca de mil brasileiros por dia, mas que também leva à morte milhares de pessoas em quase todos os países do mundo, precisa-se de uma fé que acompanhe “na hora morte” e que essas pessoas tenham uma boa morte. Mas, quem de nós sabe o que é uma boa morte?

Talvez a boa morte seja decorrente de  se ter vivido bem a vida, esse percurso entre o nascimento e a morte, disse um poeta. Mas há os que entendem, como as mulheres que vivem o culto de Nossa Senhor da Boa Morte, que a morte não é o fim da vida. Que não se confunda o pequeno intervalo  que nos foi dado a conhecer, com sendo a vida. Nós, no tempo em que conhecemos pais, avós, irmãos, filhos, primos sobrinhos, vizinhos de rua, colegas de sala de aula, banqueiros ávidos por lucros, políticos angustiados pelo medo de perder o poder, sacerdotes das muitas religiões que duvidam de seus deuses enquanto pregam suas palavras, somos apenas um pequeno fulgor da Vida, que é eterna, tanto para o materialista quanto para o espiritualista.

Desde o século XVI que vem crescendo o tempo entre o nascimento e a morte. Os bens culturais ampliaram a longevidade dos indivíduos, o que tem feito aumentar o número de habitantes que vivem simultaneamente no planeta terra. Até parece que ela não suporta mais tanta gente. Entretanto isso é uma ilusão, como a que assistíamos no filmes americanos que contavam a conquista do Oeste; em alguns deles ouvíamos diálogos que carregavam uma frase mais ou menos assim: “Este território é pequeno demais para nós dois”. Assim, ingleses, suecos, dinamarquês, franceses e outros, mataram as tribos indígenas de lá, como os portugueses mataram as tribos de cá e os espanhóis as de acolá. Esse mesmo discurso ocorreu entre chineses e japoneses; japoneses e coreanos; Hunos, e godos, visigodos, ostrogodos, francos, com os romanos ou que já estivesse ocupando aquelas terras. Nem se pensava em boa morte, ou melhor, a boa morte era a do guerreiro que morria matando. Houve um tempo que era arriscar o bom morrer com o sangue dos outros, como a épica cena protagonizada por Peter O’tolle, em Lawrence da Arábia. Mas, tanta morte deve levado aos que mal viviam, bem que poderiam ter uma boa morte. Sim, a morte aparece para todos, mas as famílias mais pobres é que parece serem mais visitadas pela Noiva de Todos, especialmente com os sucessos das pesquisas, das ciências, da medicina, da higiene. Mas nem todos têm acesso a esses bens tão necessários à vida. E os mortos continuam a ser mais numerosos entre os pobres que, por seu turno, são os mais numerosos habitantes do planeta, dominado por aqueles que, quando morrem os pobres, apenas dizem: é a vida. Mas estes guardam dinheiro para ser gasto evitando a morte nos hospitais, pendurados em máquinas que respiram por eles.  

A Nossa Senhora da Boa Morte é, também aquela que ajuda no Bom Parte, Patrocina os Despachos e aparece como Auxiliadora e companheira dos Aflitos, daqueles que estão em Desterro, que está sempre a oferece um Perpétuo Socorro, nos momentos que as Dores atordoam . A Nossa Senhora da Boa Morte está a acompanhar, os que desejam a sua companhia, ao longo da vida.

15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Boa Morte, dia da Assunção de Nossa Senhora, dia da ordenação do padre Hélder Câmara, que teve uma Boa Morte, parte de sua boa vida dedicada aos aflitos carentes filhos da Mãe  de misericórdia.

Aniversários em quatro de abril: tudo voluntário

terça-feira, abril 4th, 2017

Algumas datas ficam em nosso coração, as sabemos de cor, jamais as esqueceremos. A cada ano elas nos devolvem pedaços de nossa vida, nossa memória nos alerta para pequenas histórias em torno desse despretensioso 4 de abril.

Em 1964 era tudo muito incerto ainda, embora a barbárie já viesse se instalando. Mas tudo era difuso para um rapaz de 14 anos, como difuso era o medo. Assim , o quatro de abril vem a ter relevância anos mais tarde, quando conheci Carlos Ezequiel, funcionário público de uma companhia de águas, mas que gostava mesmo era de encenar pequenas peças, escrever poesias e, ao lado dos jovens viver a aposentadoria no bairro de Nova Descoberta. 4 de abril era seu aniversário, que nós, os que fazíamos parte e organizávamos o Conselho de Moradores depois das chuvas de 1965, sempre celebrávamos. Já o conheci com os cabelos brancos sobre uma cabeça pequena posta sobre o corpo gordo e com barriga tão proeminente como a minha, atualmente. Nosso diretor de teatro nos fazia ser parte de seu sonho. Há muitas histórias sobre ele, mas um dia encantou-se. Vim saber anos depois, pois já não morava em Nova Descoberta. Hoje, quando passo pela ladeira do Olho d´Água, meus olhos procuram a sua casa, alimentando a minha alma.

Ao tempo que convivi com Carlos Ezequiel, nós conhecemos uma jovem psicóloga que, com outros de sua idade, dedicavam tempo em Nova Descoberta. Tereza Campelo, seus amigos e Carlos Ezequiel me ensinaram o significado de doação, solidariedade, comprometimento vital com a vida e com a construção da felicidade, que é uma atividade coletiva, jamais individual, embora faça, no coletivo a alegria, o sorriso, as lágrimas e a felicidade do indivíduo integrado, bem integrado em projeto de vida. E qualquer projeto vida tem que, necessariamente, ultrapassar o indivíduo, que se torna pessoa na troca e não na compra. Aprendi ser voluntário com essas pessoas e nesse conceito.
Quatro de abril é sempre de Tereza Campelo, uma torre que sempre me guia e me chega com seu sorriso marcado pelo
cigarro, mas com a alma límpida.

Foi em um quatro de abril que outro amigo levou-me para o Colégio 2001, para uma “aula teste”. Era a hora nona. Assim foi minha primeira aula, sobre os reis fundadores do que seria a França. Era 1969 e nunca mais parei de ministrar aulas. Sendo meu trabalho, recebo salário pelas aulas, mas sempre com sentimento de que estou, voluntariamente, nessa tarefa de auxiliar a compreensão do processo que nos faz humanos: a história. Ela nos faz humanos pois refletimos como agimos e como somos, não nos faz perfeitos.

Carlos Ezequiel e Tereza Campelo, como muitos outros, viviam um sonho e dividiram esse sonho-tarefa conosco, em uma irmandade que me comove, pois nunca impuseram a sua vontade, embora tivessem mais conhecimentos, fossem mais velhos; apenas nos acompanhavam em nossos sonhos que eram os mesmo que os animavam em sua vida, em nossas conversas. E faziam isso com tamanha delicadeza de alma, que todos os que os partilhamos de pedaços de suas vidas, sempre os tivemos por inteiros.

São 47 anos magistério. E neles tenho procurado ser como esses dois e outros queridos que viveram a vida como voluntários e aprendizes.

A Primavera, a Morte e o Rio São Francisco

domingo, setembro 18th, 2016

A primavera aproxima-se, repete-se a cada ano, faz muito tempo. A cada geração muitos poetas falam da primavera, os melhores não se repetem em tema tão repetido desde que o sistema solar alcançou a temperatura ideal para a criação da vida, sua renovação. A cada ano volta a primavera e, como é difícil encontrar repetição nesse retorno. Sei que chegam as rosas, e as abelhas motivadas pela luz solar e pelo aroma doce das flores, repte-se a dança da polinização, colocando junto o que estava separado. Nesses aleatórios movimentos, das abelhas, borboletas besouros e ventos a vida se mantém. E cada vez essa repetição parece ser diferente, ao menos aos nossos olhos que, surpreendem-se com as novas informações que o cérebro seleciona para a visão, o tato, paladar. Claro que também a audição sempre pode trazer novos sons primaveris, desde que escutemos a seleção que nos cabe ouvir, presentes de pássaros, cigarras, cobras, tatus, ventos farfalhando árvores. E como cheira a primavera, os perfumes entontecem! O perfume de uma mulher, o cheiro de um homem em plena primavera é uma festa que nos leva, que tem levado a humanidade a festas de renovação da vida. Nunca cansamos de repetir tanta vida. Dela morremos.

Sim a morte também é parte integrante da primavera. Complemento da vida, a morte anuncia a renovação. Se a semente não morrer não veremos a árvores. Sendo que já completou o ciclo, os seres se despedem e servem para o fortalecimento de novos seres. A vida é a sua sucessão. Uma parte dos seres vivos assumiu a consciência de si e quere recusar-se a dar seguimento à vida contribuindo com a sua morte. Nós, os humanos não entendemos a morte, não aceitamos que essa separação radical seja parte inerente do viver. A morte nos é estranha, embora seja nossa companhia desde quando começamos a viver. Recusamo-nos a aceitar que há um limite em nosso tempo para nossa vida pessoal. No passado cuidávamos que a própria vida cuidasse desse momento, mas, insatisfeito criamos muitas maneiras para atrasar o momento de morrer. Carecemos de tempo para aceitar que alguém morreu, buscamos desculpas e culpados. Inventamos o tempo de luto, para que nos despojemos da dor que a morte nos traz.

Nesta semana ocorreu a morte de um ator que, por suas atuações em telenovelas, mas especificamente nessa última, O Velho Chico, o Velho Rio São Francisco, conquistou a simpatia e o carinho dos espectadores. Em capítulos anteriores, o personagem Santos, após emboscado, caiu no rio e foi salvo pela intervenção de índios da região, o que propiciou a apresentação de rituais religiosos para a cura dos seus ferimentos, os físicos e os espirituais, pois é essa unidade humana que é compreendida por aquela sociedade. O sentimento etnocêntrico, que é filho da incompreensão da diversidade da experiência humana, logo se apresentou e expressou o pensamento que a morte do ator Domingos Montgamer teria sido um castigo por ter a emissora de televisão aberto espaço para aquela expressão religiosa, a dos Caboclos e dos Encantados. Por traz desse pensamento está um entendimento errado da tradição judaico-cristã. Mas é também um não entendimento de nossa diversidade cultural brasileira é, em parte, resultado da ignorância de nossos currículos escolares que ignoram esse fenômeno, a diversidade cultural brasileira, não sabem como agir com essa diversidade. Negam-na quando apenas mencionam uma das tradições religiosas, e também negam-na quando, buscando desculpar-se pelo passado, passa a demonizar aquela que foi, durante muito tempo, a tradição, mais que majoritária, hegemônica. Mas a morte não é castigo individual em nenhuma cultura, e na tradição judaico-cristã é uma decorrência da desobediência à divindade, e não uma condenação individual. A morte não é prêmio nem castigo, é resultado da vida.

E se alguns estão a responsabilizar o rio São Francisco pela morte do ator, é porque ainda não entendera que um dos motivos dessa novela parece ter sido o de denunciar o assassinato que vem sendo cometido publicamente para atender interesses da sociedade industrial que nos envolve. Morre o o São Francisco com as barragens construídas com o intuito de transformar sua força em eletricidade; morrem os peixes proibidos da piracema dos habitantes primeiros das águas; morrem os pescadores; morrem as matas que foram submersas e as que foram derrubadas nas margens do rio para cultivos e, depois essa agricultura ser também submergida; morrem cidades e povoados, afogados para o estabelecimento de reservatórios, esses grandes açudes; morrem os pássaros da região que vão buscar alimentos em plantações que usam agrotóxicos para espantar insetos; morrem os agricultores intoxicados ao colocar esses venenos na plantações, etc.. São tantas as mortes que foram denunciados nessa novela de Bendito Rui Barbosa que ela quase vale um curso a respeito do meio-ambiente. E claro, também há a notícia de uma morte difícil, a morte do mandonismo, do coronelismo nos sertões do Saõ Francisco, mas não apenas lá. E, em meio de todas essas mortes, o autor diz que podemos encontrar a possibilidade de novos amores, nova vida, que nasce do amor à terra, da terra e na terra.