Archive for the ‘Dom Hélder Câmara’ Category

Drama 18 – Boa Morte e Pandemia

sábado, agosto 15th, 2020

Católicos, desde alguns séculos celebram a Ascenção de Maria, mãe de Jesus, a Nossa Senhora de inúmeros títulos, dependendo do devoto. Essa festa quase diz que Maria não morreu, mas isso lhe tiraria a humanidade. Assim. Em uma tradição brasileira, ligada ao povo negro que foi trazido da África, essa é a festa da Dormição de Nossa Senhora, conforme a tradição da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira, BA. Neste dia, nesse momento, de grave pandemia que mata cerca de mil brasileiros por dia, mas que também leva à morte milhares de pessoas em quase todos os países do mundo, precisa-se de uma fé que acompanhe “na hora morte” e que essas pessoas tenham uma boa morte. Mas, quem de nós sabe o que é uma boa morte?

Talvez a boa morte seja decorrente de  se ter vivido bem a vida, esse percurso entre o nascimento e a morte, disse um poeta. Mas há os que entendem, como as mulheres que vivem o culto de Nossa Senhor da Boa Morte, que a morte não é o fim da vida. Que não se confunda o pequeno intervalo  que nos foi dado a conhecer, com sendo a vida. Nós, no tempo em que conhecemos pais, avós, irmãos, filhos, primos sobrinhos, vizinhos de rua, colegas de sala de aula, banqueiros ávidos por lucros, políticos angustiados pelo medo de perder o poder, sacerdotes das muitas religiões que duvidam de seus deuses enquanto pregam suas palavras, somos apenas um pequeno fulgor da Vida, que é eterna, tanto para o materialista quanto para o espiritualista.

Desde o século XVI que vem crescendo o tempo entre o nascimento e a morte. Os bens culturais ampliaram a longevidade dos indivíduos, o que tem feito aumentar o número de habitantes que vivem simultaneamente no planeta terra. Até parece que ela não suporta mais tanta gente. Entretanto isso é uma ilusão, como a que assistíamos no filmes americanos que contavam a conquista do Oeste; em alguns deles ouvíamos diálogos que carregavam uma frase mais ou menos assim: “Este território é pequeno demais para nós dois”. Assim, ingleses, suecos, dinamarquês, franceses e outros, mataram as tribos indígenas de lá, como os portugueses mataram as tribos de cá e os espanhóis as de acolá. Esse mesmo discurso ocorreu entre chineses e japoneses; japoneses e coreanos; Hunos, e godos, visigodos, ostrogodos, francos, com os romanos ou que já estivesse ocupando aquelas terras. Nem se pensava em boa morte, ou melhor, a boa morte era a do guerreiro que morria matando. Houve um tempo que era arriscar o bom morrer com o sangue dos outros, como a épica cena protagonizada por Peter O’tolle, em Lawrence da Arábia. Mas, tanta morte deve levado aos que mal viviam, bem que poderiam ter uma boa morte. Sim, a morte aparece para todos, mas as famílias mais pobres é que parece serem mais visitadas pela Noiva de Todos, especialmente com os sucessos das pesquisas, das ciências, da medicina, da higiene. Mas nem todos têm acesso a esses bens tão necessários à vida. E os mortos continuam a ser mais numerosos entre os pobres que, por seu turno, são os mais numerosos habitantes do planeta, dominado por aqueles que, quando morrem os pobres, apenas dizem: é a vida. Mas estes guardam dinheiro para ser gasto evitando a morte nos hospitais, pendurados em máquinas que respiram por eles.  

A Nossa Senhora da Boa Morte é, também aquela que ajuda no Bom Parte, Patrocina os Despachos e aparece como Auxiliadora e companheira dos Aflitos, daqueles que estão em Desterro, que está sempre a oferece um Perpétuo Socorro, nos momentos que as Dores atordoam . A Nossa Senhora da Boa Morte está a acompanhar, os que desejam a sua companhia, ao longo da vida.

15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Boa Morte, dia da Assunção de Nossa Senhora, dia da ordenação do padre Hélder Câmara, que teve uma Boa Morte, parte de sua boa vida dedicada aos aflitos carentes filhos da Mãe  de misericórdia.

Drama 11 – Mais que nunca é preciso cantar

quarta-feira, maio 27th, 2020

Mais que nunca é preciso cantar que prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão

Final do mês de maio é a aproximação do meio do ano. Afinal passou a páscoa e, para alguns povos é a época da colheita ou das férias de verão. Mas isso era nas sociedade agrícolas que eram organizadas de acordo com a sequência das estações. O mundo moderno, no sentido de ser o mundo industrializado, pleno das máquinas que a matemática do engenheiro uniu-se à criatividade dos inventores segue outros modelos, pois a noite não mais existe para descansar e preparar-se para outro dia de trabalho no campo. A noite e o dia continuam existindo mas carregam muitas outras possibilidades de uso, especialmente para a diversão. Dorme-se outra hora, ou não se dorme. O mês de maio, no mundo católico, o mês de Maria, era o período de usar as noites todas indo à igreja para a reza do terço, da Ladainha, finalizando-se na coroação de Nossa Senhora como Rainha, dos Homens, dos Anjos, do Mundo.

O mês de maio começou a ser diferente em 1969. Aquele foi um ano carregado medo, aqui no Brasil. Toda uma geração estava começando a experimentar o que era viver em uma ditadura, embora ela existisse desde 1964, quando, militares e empresários depuseram um presidente que perdera a liderança da nação. Será que a tivera em algum momento? Essa pergunta existe, embora seja parcamente exposta. Indivíduos e comunidades não são seduzidos pela ideia de praticar dizer a verdade que pode lhes envergonhar. O ano de 1968 foi mais glorioso: nos Estados Unidos da América do Norte pelo festival Woodstock, um engano que virou sucesso; na França, pela ocupação das universidade realizada por estudantes e pela quase deposição De Charles De Gaulle; pela Primavera de Praga. Foi, também, o ano do Massacre na Universidade do México; e, no Brasil, foi marcado pela Passeata dos Cem Mil ocorrida em junho, ocorrida três meses após a morte de Edson Luiz, em março, no restaurante Calabouço; pela edição do Ato Institucional de número 5, em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, protetora dos olhos. Assim, 1969 começa e vive a instalação do medo. Para os que viviam em Pernambuco, este medo tornou-se tangível pelo atentado contra a vida de Cândido Pinto,  presidente da União Estadual dos Estudantes, ocorrida em abril; no mês seguinte, pelo sequestro seguido do assassinato do padre Antônio Henrique de Pereira Neto.

Ao longo de 1968, a Arquidiocese de Olinda e Recife tomou como tema central de sua ação a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, celebrando seus vinte anos. Claro que era uma ação com o objetivo de alertar o descompromisso do Brasil em assumir a realização do projeto universal. Creio que essa foi a razão do ódio profundo que a ditadura cultivou contra Dom Hélder Câmara, o primeiro grande líder defensor desses direitos. Participei ativamente da preparação e da realização dos eventos ocorridos no Colégio São José e na Paróquia do Arraial do Bom Jesus, em Casa Amarela. Dom Hélder nos apontava o caminho de fazer a Revolução dentro da Paz, em um período em que a violência começava a tomar novas formas. Vivíamos na apreensão do que ocorreria no dia seguinte. E os dias seguintes nos colocaram diante do inimaginável: mataram um padre por não puderem atingir o bispo. Um recado cifrado que foi respondido com orações e a reunião de quase todos os setores da sociedade. Sequestrado após uma reunião com jovens de classe média, moradores do bairro de Parnamirim, jovens de famílias tradicionais, cujo nomes lemos nos livros de história, viram, sem se aperceber, o sequestro. O corpo do padre foi encontrado dois dias depois, massacrado pela tortura dos agentes do regime. A comunidade católica entoava, na Matriz do Espinheiro, o hino da Campanha da Fraternidade daquele ano, que tinha como tema: FRATERNIDADE E VIDA: DOM E COMPROMISSO. A canção, ainda hoje cantada, diz assim: “prova de amor maior não há, que doar a vida pelo irmão.” Durante o cortejo que levou o esquife do padre Henrique desde o Espinheiro até o Cemitério da Várzea, soldados do exército nos acompanhava dizendo que era par nossa proteção, mas na verdade era uma ação intimidatória, provocatória. Em determinado momento tentaram tomar o caixão de nossas mãos. Tremi de medo, pensei correr, muitos pensaram, poucos fizeram e, numa resposta começamos a cantar o Hino Nacional Brasileiro, que os ditadores haviam tomado para si, como o fizeram com os demais símbolos nacionais. As vozes misturavam e os cantos ecoaram ao longo da Avenida Caxangá. O Enterro do padre Henrique nos chamava a defender o Brasil, não permitindo que os ditadores e seus sequazes nos expulsem de nossa pátria, de nossa nação. Cantar o Hino Nacional passou a ser uma prática no enfrentamento com os ditadores. Foi assim na campanha do anticandidato Ulisses Guimarães. Aos poucos, nos anos seguintes fomos retomando o país da mão dos seus destruidores, apontando seus erros, até que eles assumiram que fracassaram e nos entregaram o país de volta, mas o devolveram maculado pelo mal, como podemos perceber atualmente.    

Nos dias atuais assistimos os filhos e netos da ditadura se apossarem da nação, dos símbolos nacionais. Aproveitam da pandemia do Covid 19 para um processo de higienização social, torcendo para morram os velhos e os fracos.  Não podemos permitir isso. Não podemos ouvir, sem reação, esses netos de carcereiros e torturadores, netos físicos e espirituais,  continuem matando-nos. Devemos lembrar e cantar nossas canções de amor à vida, vivê-las, porque “mais que que nunca é preciso cantar” que “prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão” e  criando “um dia que vem vindo e que vivo pra cantar na avenida girando, estandarte na mão pra anunciar”.   

Escondidos na biblioteca 3

segunda-feira, fevereiro 17th, 2020

Escondidos na Biblioteca 3

Uma biblioteca sempre surpreende, nela encontramos amigos que nos fazem mais bem que encontramos nas ruas e festas. É um refúgio, uma festa muito particular. Conversamos silenciosamente e depois fazemos muito barulho a respeito do que vimos e ouvimos dos amigos. Recentemente alguns amigos apareceram em forma de imagem, fotografias tomadas ao acaso, algumas, e outras apresentando amigos fazendo pose, com risos dizendo que estão felizes e se deixam fotografar eternizando o sorriso. Após alguns anos pode ser que não lembremos mais o que fez surgir o sorriso, apenas supomos que queiram dizer: que bom que estamos juntos neste momento.

Quando passeie nos sertões colhi muitos sorrisos, é o que dizem as fotos, e também algumas expressões sérias, como a dos Penitentes que encontrei em Belém do São Francisco, esmolando para a preparação das festividades da Semana Santa. Um surpresa ver o Decurião com a cruz sendo seguido por homens e algumas mulheres, numa tarde de sol escaldante. Duas fotos, quase sem permissão, sem proibição. Gente do povo, gente negra que agradeça ao Bom Jesus dos Martírios a vida que levam, carregadas de esperanças e exploração. Mas seguem a vida em direção da eternidade que, como lembrava Dom Hélder, “começa aqui e agora”. Em Belém do São Francisco vi e quase dancei São Gonçalo, em agradecimento pela graça de ter recebido a aposentadoria. Os pobres sofrem tanto que, receber a aposentadoria que lhe é de direito,  só com a intervenção de São Gonçalo do Amarante. Com o primeiro recebimento vem a festa de agradecimento, congregando amigos da cidade, das cidades vizinhas, do outro lado do Rio São Francisco.

Estava escondida, em uma prateleira, fotos da Festa da Coroação do Rei do Congo, promovida pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de Floresta. A festa ocorre no final do ano, quando os reis, em cortejo, vão à Igreja, sentam-se em tronos posto na nave da Igreja da Irmandade para a Santa Missa. Igreja lotada e os reis assistindo a missa celebrada pelo bispo. Depois veio o desfile nas ruas da cidade, com a guarda de honra, e a grande festa com bolos e refrescos, na sede da Irmandade. Uma alegria só. A minha cresceu quando soube, anos depois, que um artigo que escrevi e foi publicado n’O Tamborete, um jornal dos estudantes de jornalismo da UFPE, uma experiência de incubadora digital, ainda no início dessa era que vivemos,  foi uma das bases que tornaram a Irmandade um Patrimônio Imaterial da Cultura Pernambucana, uma decisão tomada a partir da análise de historiadores e conselheiros da Cultura. Essa coroação dos Reis de Congo não virou carnaval. Ela é única e, rio quando lembro que famoso historiador paulista, que também vive em minha biblioteca, escreveu que não havia negros no sertão. Ainda bem que todos sabemos que todos os livros, inclusive os que formam a historiografia, são datados, exatamente por serem históricos. Hoje tem crescido a importância da Irmandade e outras associações representativa da história brasileira, feita pelos escravos e seus descendentes, firmam-se em um território dominado pelas tradições impostas apenas por um grupo étnico-social, que, quase sempre, tornam quase impossível a vida dos pobres a quem exploram. Ter participado do processo de renovação do entusiasmo da população negra de Floresta é um dos meus orgulhos como cidadão.

Lamentavelmente não encontrei fotos de minha participação da grande festa do padroeiro da cidade, Nosso Senhor dos Aflitos, no último dia do século XX, com uma pequena palestra na catedral, assistindo a entrada triunfal do andor de São Benedito ocupando lugar de honra, como tem sido feito desde final do século XVIII.

Projeto Apollo e outras memórias

terça-feira, julho 9th, 2019

Então, todas as datas são passiveis de serem comemorativas, sempre nos trazem à memória acontecimentos que nos formaram, como pessoas nos grupos que nós vivíamos. Sentimos isso à medida que passamos no tempo. O tempo nos faz pensar no que fizemos no passado ou, como disse Belchior, n’o “ mal que o tempo sempre faz”. Mas, talvez o tempo faça mal, talvez tenhamos feito mal no tempo que vivemos e, essas ações marcam o rosto, o corpo e a alma. Assim como também o bem que fizemos no tempo nos deixa marcas, mas não as notamos. É que o bem é quase invisível, especialmente para aqueles que por ele foram afetados; o mal, contudo, parece ter a faculdade de ser melhor visto, melhor avaliado e, portanto, mais amplificado na memória pois os seus efeitos são imediatos. O bem exige mais tempo para ser distinguido, avaliado e aceito. É comum que muitas pessoas apenas com o desaparecimento do benfeitor, seja o desaparecimento fortuito e espacial, seja o definitivo, é que se percebe o bem que ele realizou.

Como disse, sempre há cinquentenários, centenários, e muitos outros aniversários. Este ano é o centenário do fim da Primeira Guerra Mundial (um uma pausa preparatória para a segunda), e cinquentenário da primeira abordagem por humanos no solo lunar. Quase o fim da poesia, conforme escreveu Gilberto Gil em poema memorável e cantado por Elis Regina, a então rainha da Música Popular Brasileira, ombreando com a Divina Elizeth Cardoso. Mas essas lembranças pouco dizem aos que nasceram depois dos anos setenta, dos tempos difíceis e criativos dos anos sessenta. Eram tempos de ‘cara amarrada’ como descreveu Ivan Lins. Aqueles tempos nos acompanham de diversas maneiras, com sentimentos de tristeza por não termos realizado o sonho, definido como acabado por John Lennon, ele mesmo assassinado; mas também lembrado com orgulho, por essas mesmas pessoas, por terem feito parte dele, por terem tido entusiasmo e esperança, como a fazer parte das ‘minorias abraâmicas’ de dom Hélder Câmara, campeão na luta pela Justiça, por um mundo de paz e sem fome e miséria. Mas também aquele tempo passou a ser mitologizado, tempo lembrado com saudades pela geração que não o viveu, mas que cresceu no mundo em que a luta parece que se resume a entender o que aconteceu, e não mais fazer acontecer, como na poesia de Geraldo Vandré. Agora tudo parece ‘divino e maravilhoso’ e ‘quanto mais purpurina melhor’ para suportar o vazio das esperanças, não perdidas, pois não se perde o que não lhe pertence, como dizia o bordão da comediante.

Na manhã de 16 de julho de 1969, para desespero do que cultivavam (alguns ainda cultivam) aversão aos Estados Unidos da América do Norte, viram dois astronautas caminharem na lua, cumprindo a promessa feita por JFK no início da década. Ainda há muitos que dizem que tudo não passou de uma ação midiática, filmada em alguns deserto americano. Independente desses, continuava a corrida pela conquista, além do conhecimento, do espaço sideral. Em abril de 1971, em uma aula de teologia bíblica, a colega de turma, Irmã Elizabeth, missionária beneditina, pediu permissão para lembrar que, naquele momento estava ocorrendo o lançamento da nave Apolo XIII em direção à lua, e da importância do acontecimento, analisando-o como parte do projeto de Deus para a humanidade, ou como Deus permite ao homem alcançar o conhecimento e que este sirva para o bem da humanidade. Tomei a palavra e disse as bobagens permitidas ao atrevimento dos vinte anos, que “era um gasto inútil enquanto milhares de pessoas estavam vivendo em miséria e fome’, que era um projeto fruto do orgulho e da ganância do império americano, e outras palavras, que escondiam a minha ignorância sobre os resultados positivos que essas viagens estavam a trazer para a humanidade. Hoje entendo que não é a questão do conhecimento, mas da ética dos grupos que têm acesso ao conhecimento e o poder que deixa-lo alcançar todas as potencialidades. A irmã Elizabeth tinha razão, suas informações eram maiores que as minhas, sua amplidão de alma olhou para mim e, depois da aula disse-me que compreendia o que eu dissera. Um ano depois, no mês de julho, eu estava a Detroit, MI, como missionário católico e, notei que, na sala de entrada da Casa Paroquial Holly Trinity, o televisor estava ligado no momento da decolagem da Apolo XV. Não havia ninguém na sala: aquelas viagens estavam se tornando comuns, embora um problema não tenha permitido a alusinagem daquela tripulação.

Afinal quantas memórias temos daquele período, de outros períodos e, sabemos que são tantas quantas as pessoas, e serão múltiplas para cada visita pessoal, muitas delas acrescidas das informações que recebemos posteriormente, mas que a integramos na memória, como houvesse realmente acontecido. Mexer na memória é não apenas ‘reviver o passado’, conforme definição de frevo canção de Edgar Moraes, talvez seja recriar o passado, como diz Foucault. E o recriamos talvez com o nosso humor e experiência. O Pessimismo ou otimismo do presente contagia o passado.

As décadas de cada dia

terça-feira, junho 4th, 2019

Colocar um ponto, não o final que tudo acaba, mas um que marque o início de algo novo. É o desafio que acontece a cada manhã, construir o dia. Atividade corriqueira, difícil da qual não se pode fugir, pois cada momento carrega a sua surpresa. E, mesmo tendo consciência dessas artimanhas que a vida oferece, saímos do sono, sonhando dirigir a vida. E então fazemos, de novo o que foi feito ontem, mas ontem foi realizado de modo diferente e, no entanto, o resultado é quase o mesmo, pois o café tem o mesmo sabor de ontem e, embora o ovo pareça o mesmo, sabemos que foi outra galinha caipira que o pôs. E faz cinquenta anos que puseram o corpo do padre Antônio Henrique Pereira Neto, ainda com um fiapo de vida em uma rua lateral da Cidade Universitária. Meio século, e parece que quase nada mudou, uma vez que tem gente no poder agora que, naquele tempo estava aprendendo “velhas lições”, entre elas não “morrer pela pátria’, mas por ela matar, mesmo sem razões, exceto aquelas que a maldade faz enxergar como boa.

Oito anos depois daquele 29 de maio de 1969, a rotina da maldade dos torturadores reaparece na cidade do Recife, dessa feita sobre o padre católico Lawrence Rosemberg e o missionário menonita Thomas Capuano, que, no seguimento de Jesus, viviam com os miseráveis, invisíveis famintos das ruas do Recife, juntando restos de verduras, legumes, abandonados nas feiras, para fazer sopa para os jantares. Tal atividade foi sustada pela prisão e consequente espancamento desses religiosos, extremos seguidores do ideal de serviço aos menores. Surpresa dos torturadores que se depararam com a realidade de serem eles cidadãos dos Estados Unidos. Em seu zelo na realização do mal, criaram um incidente na política internacional, exatamente quando visitava o Brasil o presidente dos Estados Unidos e sua esposa, a qual veio ao Recife conferir a situação de seus concidadãos. Após essa ação, o governador de Pernambuco, Moura Cavalcanti e o presidente Ernesto Geisel, não mais puderam dizer que mentia o arcebispo de Olinda e Recife: a tortura existia e era praticada nos porões dos quartéis das Forças Armadas e nas delegacias de polícia, nestas, sofriam os mãos pobres e sem proteção que famílias de classe média-média ou média alta, podiam oferecer aos seus filhos insatisfeitos com o regime. Quando tais fatos ocorriam, o atual presidente do Brasil, era oficial do exército e adepto do uso da tortura, como demonstrou mais recentemente, quando deputado, homenageando um dos maiores torturadores, o coronel Ustra, em ação naquele período. A violência e a tortura, essa violência sistemática, planejada e executada com requintes de maldade, tem sido uma das faces da cultura brasileira, que a praticou sobre índios e africanos escravizados, mais tarde sobre os pobres deserdados, exilados da cidadania em seu próprio país.

Ao acordar não sabia que escreveria tais palavras, embora soubesse que deveria escrever, pois que minha alma estava em angústia na manhã. Mas foi no final da tarde, após as aulas sobre a cultura pernambucana, em conversa com essa moça, sentada à minha frente e que trocava conversava com os olhos querendo saber quem eu era e, eu por outro lado, sentia ser ela alguém com que vivi uma experiência, mas não lembrava qual. Então ela pergunta sobre o ITER, o Instituto de Teologia do Recife, lembrando que faz trinta anos que aquela escola teológica foi fechada por ordem vinda do Vaticano, da Congregação dos Seminários, com o aval da Congregação do Santo ofício, em agosto de 1989. Essa foi a aventura, ela lembrou que era estagiária de jornalismo e que acompanhou entrevista minha a respeito da decisão do Vaticano e posta em prática pelo novo arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho. E conversamos sobre o momento atual de nossa sociedade, e percebemos que sentimento semelhantes ao que sentimos passados, trinta, quarenta e dois ou cinquenta anos. Até achamos que, se Dom Cardoso fez o serviço que o conservador João Paulo II desejou realizar no Recife, desmontando o novo “jeito de ser igreja”, uma igreja comprometida em buscar a justiça e, ao menos minorar o sofrimento do povo; parece que o atual presidente, no campo laico, ou mesmo em certos espaços religiosos, parece ser o emissário de Trump para desmontar os Direitos conquistados, em nome da acumulação de riqueza por alguns, garantindo que a miséria crescerá. Um “jeito velho” de produzir sofrimento e dor.

Patrono dos Direitos Humanos

quarta-feira, abril 10th, 2019

“Quanto mais escura for a noite, mais bonita será a madrugada.”

Fui dormir com essa ideia, essa lembrança após saber que deputados escolheram Dom Hélder Câmara como patrono dos Direitos Humanos, no Brasil. Todos os que vivemos seu tempo, os que tivemos o privilégio de o ter conhecido e, mais ainda, de ter estado ao seu lado, sabemos que esta foi uma justa escolha, ainda que outros brasileiros poderiam ser escolhidos. Neste momento lembro Heráclito Sobral Pinto (1893-1991), advogado que, utilizou as leis que defendem os animais para obrigar a ditadura do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, permitir a defesa de Luiz Carlos Prestes, permitir que o prisioneiro fosse ouvido e levado a um julgamento honesto; e fez isto não porque o prisioneiro houvesse pedido (afinal um comunista ser defendido por um “papa hóstia”!!!), mas porque o senso que deve orientar a vida de um homem, especialmente se houver tido a oportunidade de ter estudado as leis, a vida de um advogado deve ser orientada pelo senso da justiça. Mas ainda hoje homenageiam o ditador, a que cognominaram de “pai dos pobres”, ao mesmo tempo que escondiam dos pobres as maldades cometidas por “seu pai” e seus auxiliares, esses que receberam benefícios da ditadura pelos serviços gentilmente prestados. Muitas foram as mãos e muitos desejos do mundo ficaram imobilizadas para que a ditadura de Vargas fosse mantida e ainda hoje festejada. Heráclito Sobral Pinto poderia ter sido o escolhido para ser o patrono dos Direitos Humanos, pois ele defendeu a dignidade humana antes mesmo que a Organização das Nações Unidas fosse criada e viesse a consagrar o direito de defesa, o direito de que cada pessoa possa ter uma voz que a represente nos tribunais. E ele fez isso gratuitamente.

Outra personalidade que poderia ter sido escolhida é o cardeal Dom Evaristo Arns (1921 -2016), o Dom que o povo de São Paulo recebeu e que chamava de “tio” o Dom que Pernambuco ganhou. Dom Evaristo afrontou a ditadura civil-militar, à época dirigida pelo general Ernesto Geisel, abrindo as portas da catedral de São Paulo, no intuito de ser o espaço para cultivar a memória de Vladmir Herzog, jornalista assassinado em uma das dependências do exército, tornando pública a responsabilidade do Estado pelo crime, pelo assassinato de Herzorg, e o fez ainda que o assassino fosse o poderoso Estado. E sua catedral se tornou o local dos crentes de todas as crenças. Dom Evaristo alimentou a esperança que gerou a compilação dos crimes da ditatura civil-militar que prendeu, torturou e matou, em livro Tortura Nunca Mais. A tortura que foi denunciada internacionalmente por Dom Hélder Câmara em palestra pública na França, o que lhe valeu o ódio de todos os torturadores; de todos os falsos patriotas que sujam, com o sangue de seus compatriotas, a bandeira que dizem defender; Dom Hélder ganhou o ódio de todos que sabiam do que estava acontecendo, mas, por questões de governabilidade’ silenciaram e assistiram silenciosamente a pena de morte social que a ditadura civil-militar impôs ao arcebispo de Olinda e Recife. Sim, Dom Evaristo Arns poderia ter sido o escolhido, pois com o silenciamento imposto a Dom Hélder, tornou-se a Voz dos que não têm voz, levantou, terna e fortemente a sua voz contra setores poderosos do Estado brasileiro e de grupos de sua própria Igreja. E manteve-se firme na defesa dos Direitos humanos

Vivemos agora um novo tempo, um tempo que deseja emular as ditaduras pretéritas, a quem rendem glórias e afagos; vivemos um tempo no qual os dirigentes eleitos escolheram como heróis os torturadores, um tempo de um governo que tem uma ministra, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, que, penso, imagina-se ser Maria Antonieta por terem lhe dado o nome da Imperatriz do Brasil e confunde a brasileira com a Austríaca que foi feita rainha da França. Maria Antonieta, ao saber que a população de Paris estava revoltada por conta da falta de pão, o alimento diário dos pobres de Paris e toda França e Europa, teria dito que o povo, na falta de pão, comesse brioches. Esta a arrogância do, agora antiquíssimo Regime. A arrogante ministra da agricultura do atual govermo disse, em sessão na Câmara dos Deputados que “nós (o Brasil) não passamos muita fome, porque nós temos manga nas nossas cidades, nós temos um clima tropical”, sugerindo que a população saia às ruas, jardins, plantações e busque tal fruto para garantir a sua sobrevivência. Esquece, tal senhora, que caso o povo siga seu conselho bobo, será vítima da lei que protege a propriedade. Tal é a arrogância dos poderosos, dos que jamais viram o povo, (quando o encontra não percebem além do que dele pode ser retirado para sua conta bancária). As palavras dessa ministram mostra a sua mente oligarca, de uma oligarquia nojenta e, caso houvesse uma pessoa decente na cadeira de presidente da República, esta senhora com mentalidade do século XVIII já estaria demitida. Mas, talvez que ali hoje se senta, pareça ser como Luiz XVI, que, embora tivesse inteligência dos acontecimentos, preferiu seguir como os antigos. Se for assim, precisaremos muito de olhar como agiria o nosso Patrono Nacional dos Direitos Humano para evitar tragédia.

Mas foi um imensa felicidade, neste início de ano, a publicação dessa homenagem a Dom Hélder, pois ela nos alerta que devemos continuar nesta caminho da defesa dos direitos dos homens diante da maldade.