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Águas de Março, 2022

terça-feira, março 1st, 2022

Prof. Severino Vicente da Silva

Estão por chegar as águas de março, essas que põem fim ao verão. Sim, deve chover, diz a sabedoria dos que conhecem a natureza, até meados de março para que o verão não se transforme em longa estiagem, em seca, terra queimada, sem água, sem verde. Apenas o cinza da dor de não ter o que comer, pois a até a caça sumiu. O mês de março, que por muito tempo foi o início do ano, agora fica perdido como o fim do primeiro trimestre do ano, depois do carnaval, depois das primeiras chuvas, as que sempre nos lembram os limites da tecnologia diante das mudanças da natureza. Certo que a tecnologia mais moderna, essa nossa contemporânea, quase cumpriu o ordenamento de tudo conhecer e tudo dominar, mas, como o gato da fábula, escondido, usa o que não foi dito à ingênua lagartixa que até então se julgava sábia. O gato tem sempre algo a dizer, a fazer, a surpreender.

Lagartixas são capazes de subir as paredes, embora os azulejos limpos e encerados sejam armadilhas, pondo-as em situação vexatória se algum gato estiver por perto e pouco disposto a conversar. Mas se observarmos os gatos quando eles pegam uma lagartixa, barata ou rato, veremos bem que eles não caçam esses animais para sua alimentação, e sim para o seu divertimento. Gatos esses companheiros milenares dos homens, que alguns vezes foram alçados à condição de divindade e outras vezes em emissários das maldades, são a natureza deles adaptados à natureza dos homens, que os domesticaram, sem mesmo saberem porquê. Antigos egípcios perceberam que esses animais protegiam os grãos contra os indomesticáveis ratos; depois verificou-se que eles faziam companhia, em troca de alimento, e serviam para dar e receber carinhos. Amigos dos velhos, especialmente das velhas solitárias e abandonadas por todos os seus relacionamentos, foram vistos como mensageiros do mal, um mal que viria dessas mulheres, acusadas de trazerem sofrimentos, após terem sofrido tanto. Os gatos, mais recentemente, passaram a ser sinônimos de beleza, de delicadeza. A imaginação feminina, capturada pelos que se apossaram das descobertas freudianas para vender produtos de maneira imperceptível, via nesses moços bonitos, a promessa de carinho e dedicação que um gato promete. Mas os gatos jamais foram totalmente domesticados, sempre que podem saem da casa onde vivem, perambulam algum tempo pela vizinhança, e voltam rosnando baixinho, roçando carinhosamente as pernas, na quase certeza de que mãos descerão para os alçar ao colo e, com satisfação lhes alimentar. Logo as redes sociais estarão espalhando a notícia: ele voltou, o boêmio voltou novamente.

Uma vez estabelecidos, os gatos não gostam de que outros gatos ou animais se aproximem do espaço que foi conquistado. Gatos são capazes de lutar com cães e, se necessário para seus fins, podem atacar os humanos. Os humanos também fazem isso, despem os movimentos persuasivos e carinhosos pelo arreganho dos dentes e a exposição do corpo tenso, pronto para o ataque. Quando atacam, nem podemos nos lembrar como eram carinhosos seus movimentos. O ataque de um gato pode deixar feridas permanentes, especialmente porque não se esperava que um dia, esse animal tão fofinhos, viessem assemelhar-se a um dragão. Talvez se esperasse, mas nunca se tem noção do quando seria feito o ataque.

As Águas de Março foram, no Rio de Janeiro, surpreendidas pelas águas que sempre chegam em fevereiro, mas, como é de se esperar, os que dirigem aquele Estado, não apenas o deste momento, não consideram o que a ciência diz sobre o movimento dos rios voadores, nem sobre evitar que seres humanos construam suas residências em locais não adequados, pois a natureza não estabeleceu apenas uma forma de solo. Mas nega-se a ciência e, todos os anos, vemos que morrem muitas pessoas nesse enfrentamento com a natureza, como se ainda vivêssemos nos tempos iniciais da vida humana na terra. A realização de alguns seres humanos parece estar na promoção do sofrimento e da dor em outros seres humanos. Criam-se etiquetas de comportamento que permitem a tranquilidade dos gatos a brincar com as lagartixas, flexionando as mandíbulas de maneira a que o seu brinquedo dure um pouco mais. E a brincadeira segue, a cada ano. O Gato parece saber que a lagartixa, contra todas as evidências, ainda acredita que o gato vai permitir a continuidade de sua vida. Petrópolis, Angra dos Reis, Recife e outras cidades são mostra de como lagartixas tentam escapar do gato subindo azulejos.

E no outro lado da terra, antes que o inverno se fosse de vez, mais uma invasão, mais uma resposta a uma provocação, mais mortes programadas enquanto os gatos decidem quantos vão morrer, onde vão viver até morrer. Não é de hoje que é assim, nem este é o único lugar do planeta onde se faz “jogos de guerra”, jogos que ocorrem na África, no Oriente Médio e em outros espaços habitados por gente não civilizada, de acordo com os padrões que os civilizados da eurásia definiram. Os gatos sempre definem a vida das lagartixas, elas não têm garras. Os gatos da política contratam seus cães de guerra.

Mas cães, como se sabe, também foram domesticados.  

Brasil nascendo com o carnaval

sábado, fevereiro 2nd, 2013

 

Fevereiro é marcado pelo carnaval. Pouco menor que os demais, é mês esperado com ansiedade por conta da permanente luta pela afirmação da liberdade de ganhar espaços sobre a sisuda do trabalho, característica do mundo criado pela sociedade europeia em sua afirmação sobre as  demais possibilidades de civilização.  As instituições religiosas e a dinâmica imposta pela necessidade da acumulação da riqueza obrigaram gerações a esquecerem das brincadeiras espalhadas durante o ano. As sisudas roupas negras dos quackers, dos puritanos e jesuítas tocaram até mesmo o marrom franciscano que recebeu a preocupação capuchinha pelo pecado. A sonoridade alegre de Palestrina foi sendo substituída pela alegria fugidia do barroco. Novas tecnologias trouxeram facilidades à vida diária e a morte foi ficando distante. Passamos ter mais tempo para produzir riquezas e, se conseguimos chegar à velhice poderíamos tudo isso degustar. Assim fizemos algumas mudanças em nossas vidas, nossas ruas ficaram mais amplas para os donos automóveis e para os ônibus lotados de trabalhadores que se multiplicaram, graças ao avanço da ciência que auxiliou a aumentar a produção de alimentos e inventar meios e vacinas com o objetivo de tanger a morte. Ganha-se tempo. Economiza-se  força muscular, anda-se menos, palácios tornaram-se casas, cortiços foram transferidos para favelas, os hospitais com seus batalhões de médicos, enfermeiras e psicólogos nos orientam a como nos manter vivos. Nas escolas, agora em maior número e diversificadas segundo a classe social, nos oferecem os instrumentos que nos ajudam a atravessar as ruas e entender um pouco do que acontece ao nosso redor. Mas ficou a nostalgia do carnaval.

Ao término do século XIX, no Brasil de cristianização católica superficial e modernização rala, o carnaval parece ter servido de caminho para que as camadas com menor acesso aos bens da modernidade ganhassem as ruas e reinventassem o Brasil, forçando que os participantes dos bailes que ocorriam em recinto fechados olhassem pela janela e observasse que os recentemente liberados do trabalho escravo, junto com os que, embora livres do trabalho forçado, não tinham permissão para inventar – em uma sociedade escravocrata não pode haver liberdade de nenhum tipo, ocorrem variações do mesmo – criaram um novo modo de divertir-se e , tomando as ruas, reinventaram o carnaval. Não como o de Veneza ou Amsterdan, Nova Orleans ou Quito. Foi sendo criado algo original, o carnaval brasileiro nascendo com o Brasil livre.    Nas cidade onde havia maior concentração de gente pobre tri-centenária (mestiços) e gente pobre de duas ou uma geração na terra (gente liberada pela Lei do Ventre Livre e pela Lei João Alfredo), lugares como Rio de Janeiro, Recife, Salvador, São Luiz e outras metrópoles do período imperial, foram palco dessa criação. Inicialmente ocupando apenas os três dias permitidos pela seriedade do Concílio de Trento, foram, ao longo do século XX, ocupando outros tempos, abrindo novas veredas para as múltiplas possibilidade ofertadas pela nossa tradição. Hoje o carnaval compete e supera muitas indústrias criadas pela modernidade. O carnaval moderno é uma indústria produtora de riqueza argentária a partir da riqueza gozosa desse povo brasileiro sintetizador das dores e alegrias do parto da modernidade.

Viva o carnaval e sua luta contra a seriedade dos reformadores dos costumes que, agora são levados a debater e conviver com os costumes que foram criados  nessa luta. O carnaval não pode ser visto como um índice de felicidade, mas pode ser entendido como uma vitória no embate com o mundo magro da seriedade e sisudez dos pastores, padres, gerentes de fábricas, cabos de usinas, etc..  Assim nos fazemos e fazemos o Brasil.