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Águas de Março, 2022

terça-feira, março 1st, 2022

Prof. Severino Vicente da Silva

Estão por chegar as águas de março, essas que põem fim ao verão. Sim, deve chover, diz a sabedoria dos que conhecem a natureza, até meados de março para que o verão não se transforme em longa estiagem, em seca, terra queimada, sem água, sem verde. Apenas o cinza da dor de não ter o que comer, pois a até a caça sumiu. O mês de março, que por muito tempo foi o início do ano, agora fica perdido como o fim do primeiro trimestre do ano, depois do carnaval, depois das primeiras chuvas, as que sempre nos lembram os limites da tecnologia diante das mudanças da natureza. Certo que a tecnologia mais moderna, essa nossa contemporânea, quase cumpriu o ordenamento de tudo conhecer e tudo dominar, mas, como o gato da fábula, escondido, usa o que não foi dito à ingênua lagartixa que até então se julgava sábia. O gato tem sempre algo a dizer, a fazer, a surpreender.

Lagartixas são capazes de subir as paredes, embora os azulejos limpos e encerados sejam armadilhas, pondo-as em situação vexatória se algum gato estiver por perto e pouco disposto a conversar. Mas se observarmos os gatos quando eles pegam uma lagartixa, barata ou rato, veremos bem que eles não caçam esses animais para sua alimentação, e sim para o seu divertimento. Gatos esses companheiros milenares dos homens, que alguns vezes foram alçados à condição de divindade e outras vezes em emissários das maldades, são a natureza deles adaptados à natureza dos homens, que os domesticaram, sem mesmo saberem porquê. Antigos egípcios perceberam que esses animais protegiam os grãos contra os indomesticáveis ratos; depois verificou-se que eles faziam companhia, em troca de alimento, e serviam para dar e receber carinhos. Amigos dos velhos, especialmente das velhas solitárias e abandonadas por todos os seus relacionamentos, foram vistos como mensageiros do mal, um mal que viria dessas mulheres, acusadas de trazerem sofrimentos, após terem sofrido tanto. Os gatos, mais recentemente, passaram a ser sinônimos de beleza, de delicadeza. A imaginação feminina, capturada pelos que se apossaram das descobertas freudianas para vender produtos de maneira imperceptível, via nesses moços bonitos, a promessa de carinho e dedicação que um gato promete. Mas os gatos jamais foram totalmente domesticados, sempre que podem saem da casa onde vivem, perambulam algum tempo pela vizinhança, e voltam rosnando baixinho, roçando carinhosamente as pernas, na quase certeza de que mãos descerão para os alçar ao colo e, com satisfação lhes alimentar. Logo as redes sociais estarão espalhando a notícia: ele voltou, o boêmio voltou novamente.

Uma vez estabelecidos, os gatos não gostam de que outros gatos ou animais se aproximem do espaço que foi conquistado. Gatos são capazes de lutar com cães e, se necessário para seus fins, podem atacar os humanos. Os humanos também fazem isso, despem os movimentos persuasivos e carinhosos pelo arreganho dos dentes e a exposição do corpo tenso, pronto para o ataque. Quando atacam, nem podemos nos lembrar como eram carinhosos seus movimentos. O ataque de um gato pode deixar feridas permanentes, especialmente porque não se esperava que um dia, esse animal tão fofinhos, viessem assemelhar-se a um dragão. Talvez se esperasse, mas nunca se tem noção do quando seria feito o ataque.

As Águas de Março foram, no Rio de Janeiro, surpreendidas pelas águas que sempre chegam em fevereiro, mas, como é de se esperar, os que dirigem aquele Estado, não apenas o deste momento, não consideram o que a ciência diz sobre o movimento dos rios voadores, nem sobre evitar que seres humanos construam suas residências em locais não adequados, pois a natureza não estabeleceu apenas uma forma de solo. Mas nega-se a ciência e, todos os anos, vemos que morrem muitas pessoas nesse enfrentamento com a natureza, como se ainda vivêssemos nos tempos iniciais da vida humana na terra. A realização de alguns seres humanos parece estar na promoção do sofrimento e da dor em outros seres humanos. Criam-se etiquetas de comportamento que permitem a tranquilidade dos gatos a brincar com as lagartixas, flexionando as mandíbulas de maneira a que o seu brinquedo dure um pouco mais. E a brincadeira segue, a cada ano. O Gato parece saber que a lagartixa, contra todas as evidências, ainda acredita que o gato vai permitir a continuidade de sua vida. Petrópolis, Angra dos Reis, Recife e outras cidades são mostra de como lagartixas tentam escapar do gato subindo azulejos.

E no outro lado da terra, antes que o inverno se fosse de vez, mais uma invasão, mais uma resposta a uma provocação, mais mortes programadas enquanto os gatos decidem quantos vão morrer, onde vão viver até morrer. Não é de hoje que é assim, nem este é o único lugar do planeta onde se faz “jogos de guerra”, jogos que ocorrem na África, no Oriente Médio e em outros espaços habitados por gente não civilizada, de acordo com os padrões que os civilizados da eurásia definiram. Os gatos sempre definem a vida das lagartixas, elas não têm garras. Os gatos da política contratam seus cães de guerra.

Mas cães, como se sabe, também foram domesticados.  

Recife, o amor

terça-feira, dezembro 21st, 2021

Recife, o amor.

Severino Vicente da Silva

O alagoano Pedro Ivo, na simplicidade poética que ainda o faz desconhecido das mais novas gerações, pôs, no verso, o imenso amor por uma cidade: “Amar mulheres, várias, amar cidades, só uma – o Recife.”

Amar é dar-se, simplesmente dar-se enquanto cuida para que nada falte a que tem nosso amor. Amar o Recife, conhecer seus espaços iniciais, as construções levantadas por outros amantes que a embelezaram, cuidar para que a beleza que foi construída com sofrimento, alegria, angústia, contentamento, mantenha-se. Amar o Recife, mais que passear por suas entranhas e artérias, é sentir como Aldemar Paiva, o pulsar do coração da cidade; dizia ele a cada manhã, ele alagoano gritando o amor, cada manhã dizendo, cantando Pernambuco você é meu. Amar o Recife, manter o coração da metrópole, fazê-lo forte, saudável, atraente, viver as seduções de suas ruas, lembrar as que roubaram espaços dos córregos, dos mangues e, depois foram tomadas pelas novas ou com novos nomes. Amar o Recife é acompanhar os caminhos crescidos paralelos ao rio, então formoso, caudaloso, Capibaribe. Amar o Recife é subir ao Morro da Conceição para visitar a Virgem, e descer do morro e visitar a Virgem do Carmo. Amar o Recife é viver desses amores por Maria.

Eram meados dos anos cinquenta quando o recifense Mário Melo disse que o Recife que ele estava vendo crescer já não era mais o seu Recife. O Recife crescia, mas caminhava para deixar de ser a terceira cidade do Brasil; o Recife crescia, na mesma época Gilberto Freyre dizia, como um sapo a querer ser boi.

Bonita, a cidade atraia os pobres matutos, assustando os ‘capitalistas’ e os matutos ricos, senhores de antigos engenhos, que ocuparam antiga rua dos Coqueiros, rebatizada com a nobreza do conde que fizera do Recife quase uma Paris, com suas praças protegidas por cercas de ferro.

Foi nesse Recife que nasceram Mário Melo (1894-1959) e Gilberto Freyre (1900-1987). O jornalista/historiador, bem como o sociólogo/escritor cresceram no mesmo Recife de Ulisses Pernambucano (1892-1943) que não chegou a conhecer o Recife que se fazia desconhecido daquele que, organizando o carnaval de rua feito pelo povo, domou o ímpeto do brinquedo que nascia dos anseios libertários; não mais o sentimento dos antepassados dos senhores de engenho que, ao longo do século XIX abandonaram Olinda, mas uma outra liberdade que ocupava as ruas frevendo nas estreitas ruas do Bairro de São José. Nos anos cinquenta, pouco antes de Nelson Ferreira nos lembrar que Mário Melo “partiu para a eternidade”, o Recife acatava e ‘acomodava’ os matutos pobres nos morros da Zona Norte, próximos da Virgem da Conceição, onde já haviam se instalado alguns tangidos pela renovação do Porto do Recife, pela Campanha contra o Mocambo. Aliás, os mocambos foram defendidos por Gilberto Freyre contra a ação profilática e ‘embelezadora’ de Agamenon Magalhães, sertanejo de nascimento (1897) mas recifense na amorosa morte (1952). Nos mocambos, o Dr. Ulisses Pernambucano encontrou uma manifestação do sagrado que era confundida com doenças mentais ou com superstições próprias de um povo que precisava ser educado, civilizado, controlado, no pensamento do sertanejo e, se não possível fosse, que fosse colocado para além do ‘Brejo dos Macacos’. O Pernambucano Ulisses sai em defesa dessa cultura com os limites culturais de seu tempo. Enquanto isso Gilberto Freyre queria perceber uma sociedade democrática, nascida de uma escravidão ‘menos violenta’ que a praticada em outras partes do continente. Quem não apanha palmada não sabe a dor da palmatória.

Mário Melo buscava construir uma história com os heróis das “revoluções irredentas”, as revoluções ocorridas no Recife: a dos mascates, dos padres e de alguns senhores de engenho e gente. No Recife, Gilberto Freyre fazia a história da família patriarcal e Ulisses Pernambucano descobria a necessidade de atenuar a ação da polícia sobre os trabalhadores que ainda eram tratados como “escravos de ganho”, e lutavam bravamente para criar e fortalecer laços de famílias, a celular e a extensa. E lá estava Maria Júlia do nascimento, nascida no Recife de 1877 e que morreu no Recife de 1962, era Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante, que tendo sobrevivido ao poder persecutório da ditadura varguista, personificada por Agamenon Magalhães, que chamou Recife de cidade cruel, por jamais ter-lhe dado uma vitória eleitoral, talvez em cumprimento ao tratamento que ele e sua polícia dedicara aos recifenses pobres, nascidos na beira dos mangues, alimentando-se dos caranguejos e sempre a serviço para os trabalhos mais duros para o bem estar da cidade. Quem notou e anotou este Recife foi Josué de Castro, recifense nascido em 1908, e morto em Paris, em 1973, exilado da cidade e do país que tanto amou. Deve ter morrido com saudade da capital da saudade. Mas antes, e por amar o Recife, tornou-se o estudioso da fome que as varandas das casas grandes dos engenhos e dos palacetes construídos nas ruas e avenidas com nomes da nobreza do século XIX não conseguiam ver ou compreender.

É certo que o Conde da Boa Vista amou o Recife e quis o seu bem; não duvido do carinho de Mário Melo pelo Recife, suas histórias heroicas e seus carnavais, defendendo o frevo, o maracatu, e até mesmo o índio que Gilberto Freyre tem dificuldade de enxergar; Ulisses Pernambucano é outro amante da cidade e cuidador de seu povo, dos xangozeiros e catimbozeiros; Ulisses Pernambucano, sim, poderia dizer que o Recife seria uma “cidade ingrata”, mas não o disse e por ela morreu perseguido pelo interventor, que não amava a cidade, mas gostava da ordem e da lei, sempre a seu favor; o amor de Ulisses Pernambucano foi uma das garantias para Dona Santa e os maracatus.

Quando hoje olho e experimento os atuais ares do Recife, vejo o decair do gosto que os prefeitos, desde a segunda parte dos anos sessenta do século passado, têm para com a cidade. Quando caiu a Matriz do Corpo Santo, ergueu-se o “Recife Antigo”, mas quanto derrubaram a Igreja do Bom Jesus do Martírio, com o aval de Gilberto Freyre, apenas o vazio foi colocado em seu lugar e, parte do povo que ali morava e sua cultura perdeu-se, perdeu-se bem mais que os cultos afro-originários perseguidos na década anterior. Os que saíram dos seus engenhos de ‘fogo morto’ com a chegada das usinas, abandonaram o Recife, para onde se dirigem, agora, só em tempo de Carnaval, acompanhando um Galo que matou o carnaval que Mário Melo defendeu.

Ah! Recife, minha ilha de água doce, como está ficando amargo te ver hoje.

Matuto e matutos

sexta-feira, julho 2nd, 2021

MATUTO E MATUTOS

Severino Vicente da Silva

Nos anos finais do século passado frequentei algumas regiões do “interior” de Pernambuco, o Sertão, aquela parte geográfica do país mais distante do litoral, pude compreender certos mitos, verdades aparentes que me foram ensinadas nas salas de aulas e nas ruas, e que foram absorvidas, com algum preconceito, a respeito do Sertão e o seu modo de viver. Frequentando a região e conhecendo algumas franjas do viver das pessoas, aprendi coisas novas, de modo que o Sertão ficou sendo também a minha terra, fui me tornando sertanejo. Como cresci quase cheirando o mar, tudo que não era do litoral era-me estranho. Convidado para ir dividir com jovens sequiosos de saber o que havia aprendido ao longo de minha vida, nos bancos escolares e em outros lugares, a ida ao Sertão deu-me oportunidade de lenta e quase inconscientemente, compreender que havia aprendido pouco. O que não quer dizer que o Sertão sabe tudo, mas a experiência de ter vivido lá alguns finais de semana, foi valiosa para entender novos caminhos. Eu já estivera em outros lugares além das ruas do Recife, a cidade que me desafiou a viver do magistério. Cresci vendo enchentes do rio que desce desde o Agreste para criar uma ilha em cooperação com o Oceano Atlântico, e ainda outra com um rio matuto; cresci no Recife sentindo o vento solto de agosto, fazendo levantar as saias da moças nas esquinas dos prédios levantados à beira do rio, zombando das palafitas formadoras das favelas fluviais; acompanhei as chuvas que serrilham o barro dos morros ocupados corajosamente por uma gente que, como minha família, chegou da Mata; tudo isso era o meu mundo, e me fez.

E quando voei para longe, fui por cima, tão alto e tão rápido que pouco aprendi no trajeto, mas a surpresa da vida com objetos e pessoas tão distintas que lá encontrei encantou-me. Encantados não aprendem, embora o encantamento inicial pode vir a ser um dos caminhos do aprendizado. Viver com o encantador nos põe em contato com seus segredos e, podemos alcançar suas fragilidades.

Hoje observo que houve um tempo que eu não, queria ser matuto, desgostava-me que assim me vissem. Viver no Recife é aprender a não ser matuto. Matuto, diz o dicionário, “é aquele que demonstra timidez, retraimento, desconfiança”; do matuto também se diz que é “indivíduo que vive no campo e cuja personalidade revela rusticidade de espírito, falta de traquejo social; caipira, roceiro, jeca”[i].  Ser matuto é ser descriminado negativamente.

Engraçado é que houve um momento em que uma Junta de Matutos, afastou do governo Gervásio Pires Ferreira, revolucionário de 1817, escolhido na Convenção de Beberibe (1821) para governar Pernambuco, primeira região livre do domínio dos portugueses.[ii] Quem e o que eram esses “matutos”, será que a sua ação aprofundou, ou criou, esse sentimento nos recifenses?

Aqueles Matutos eram senhores de engenho, membros das tradicionais famílias Albuquerque e Cavalcanti, a quem se atribui os maiores feitos da história pernambucana. Após terem participado de conspirações e revoltas contra o poder colonial em 1801, e mesmo em 1817, eles foram seduzidos pelos projetos de José Bonifácio de Andrade e Silva, cuja carreira política se fez sob a proteção dos Bragança. Ao Regente uniram-se após o Sete de setembro de 1822, o regente de Dom João, aqui deixado para evitar que aventureiros se apossassem das terras conquistadas pelos lusitanos. Então, os Matutos, os donos de terra e escravos, abandonaram os ideais de Frei Miguelinho, padre João Ribeiro, Padre Tenório. Mais tarde derrotaram a Confederação do Equador, que levou Frei Caneca ao arcabuzamento anônimo, pois os recifenses, livres ou escravos a quem prometiam liberdade, recusaram colocar as cordas no pescoço do patriota recifense. Não quiseram ficar como os “Matutos”.  Mas não se manda se não se tem a quem mandar.

Por crescer no Recife, sendo matuto de Carpina, retirante para o litoral, aprendi a não gostar de matutos, tornei-me recifense. Os do Recife, sem saberem, refazem a historiografia silenciosamente, enquanto o historiador oficial conta a vitória dos Matutos e, procura entender porque sua história é tão rica, mas fica perdida na bagaceira.

Neste período de celebração de dois séculos da independência de Pernambuco, há que se lembrar que houve uma disputa interna na elite, sendo uma parte mais enamorada dos ideais republicanos e de autonomia em relação ao Rio de Janeiro e à Lisboa, e outra parte mais próxima do projeto dos Bragança, sob a liderança de José Bonifácio, apoiada nos setores mais conservadores e monárquicos, pois a monarquia lhes servia mais. Entre 1821 e 1825 houve muita troca de lugares na política, para finalmente os Matutos, senhores dos engenhos da Zona da Mata, continuarem a cavalgar a Província. O professor Marcus Carvalho nos lembra que se pode dizer

 com razoável segurança que 1824 não foi uma aventura republicana pura e simples, mas uma radicalização desesperada, o desdobramento trágico das tentativas de tomar o poder feitas pelas facções das elites que não queriam se aliar ao projeto centralista e autoritário vindo do Rio e que, por alguns meses, chegaram a preferir a manutenção do status de reino unido, desde que dentro do modelo federalista e constitucional adotado, por algum tempo, pelas cortes a partir de 1820.[iii]

Hoje sei que não devo colocar, juntar, no mesmo espaço social, os que formaram a Junta dos Matutos e os matutos que vieram a formar as residências que ocupam os morros da Macaxeira, Nova Descoberta, Vasco da Gama, Córrego do Euclides, Beberibe e os becos do Arruda. Afinal são Dois Séculos no qual assistimos os dois matutos: um que é Cavalcanti e sua parentela, o outro que é o cavalgado. Por outro lado, compreendo que são duzentos anos de reclamações dos cavalgadores em relação às esporas e freios que lhes são postos desde que, para garantir a limpeza de suas botas, aceitaram por medo de uma haiatização, o café sempre servido sem açúcar.


[i] https://www.google.com.br/search?q=matuto+significado&sxsrf=ALeKk02kQR31dIE56D4vCyn89MmqF9mJXw%3A1625139690208&source=hp&ei=6qndYOCwCtS85OUPw4KiwAo&iflsig=AINFCbYAAAAAYN23-poUJFBYITiB1RkOIcN-BbCJdZLu&oq=matuto&gs_lcp=Cgdnd3Mtd2l6EAEYATIFCAAQsQMyAggAMgIIADICCC4yAgguMggILhDHARCvATIICC4QxwEQrwEyAggAMgIIADICCC46BAgjECc6CAguELEDEIMBOgUILhCxA1CgR1i_S2C_dmgAcAB4AIABkwSIAdYMkgEJMi0xLjEuMC4ymAEAoAEBqgEHZ3dzLXdpeg&sclient=gws-wiz. Visto em 1º/07/21.

[ii] CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824. https://doi.org/10.1590/S0102-01881998000200014

[iii] CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824. https://doi.org/10.1590/S0102-01881998000200014

Fertilidade, chuvas e modernidade rarefeita

terça-feira, maio 10th, 2016

O mês de maio tem recebido muitos significados ao longo do tempo, representando muitos sonhos primaveris. Assim tem sido lembrado pelos que vivem no hemisfério norte da terra, costume que foi seguido pelos grupos humanos que foram afetados pela expansão da civilização europeia. Assim é que, para lembrar a fertilidade da terra festivais eram realizados e deram origem às grandes religiões, coisa séria que, apesar do ar festivo, o Maio era o momento de celebrar núpcias e dar início ao processo de renovação da vida.

No Recife e no litoral pernambucano, o mês de maio parece ser um momento especial para as grandes chuvas, ao menos a cada trinta anos. No passado, quando os pântanos ocupavam as várzeas do Rio Capibaribe, era coisa sem maior importância, pois as águas do rio também traziam o enriquecimento do solo para a agricultura. Mas ao final do século XX, após o processo que transformou áreas de agricultura em áreas residenciais, as chuvas de maio trazem graves problemas. Em 1975, a enchente do Capibaribe e as chuvas tornaram explícito que o processo de urbanização não considerou o espaço para o rio, da mesma forma que lembrou a necessidade de cuidar melhor da parte da população que foi levada a morar nos morros. Daquela chuva de três dias surgiram novos bairros na cidade que foi se aproximando de Jaboatão. Situação semelhante, dez anos antes, fez nascer a Operação Esperança, liderada por Dom Hélder Câmara para animar a solidariedade dos mais pobres e com os mais pobres. Era uma tradução prática do sonho do Irmão Roger, de Taizé. Além disso, para cuidar dos homens, os governantes da época tomaram a decisão de domar o rio e cuidaram de construir uma barragem. Mas o cuidado com os homens foi menor, e neste ano de 2015, sem a enchente, as chuvas mostraram que a cidade não se organizou culturalmente para a nova sociedade, e os hábitos rurais da população que foi escorraçada para a expansão da agricultura, permanecem na cidade. Educados para viver de forma quase natural, a população – pobre ou rica – do Recife e suas vizinhas, não se habituou, ou não aprendeu, as novas exigências da guarda dos resíduos que produz, pois, nesta nova sociedade, eles não são absorvidos naturalmente.

E maio vai sendo marcado pelas invasões das águas sobre as ruas e as casas, pois foi próximo aos rios e a antigos riachos que novos conjuntos habitacionais foram construídos sem considerar a natureza. Esse fenômeno pode ser encontrado em quase todas as capitais brasileiras que, desejando muito serem reconhecidas como modernas, fazem rápido curso de Atualização Histórica, como ensinou Darcy Ribeiro, e vivem uma modernidade superficial, uma modernidade de consumo, mas sem entender o que e porque consome tanto. Maio, que era o mês da fertilidade, agora vai se tornando o mês do temor das chuvas. Mas essa situação vale apenas para os que cultivam a memória, como os festivais antigamente faziam.

No mais, é como canta o poeta quase moderno: “deixa a vida me levar, vida leva …”
E esse desleixo vale também para outra parte da vida política, como comprova o comportamento de um deputado, crescido nas férteis áreas da corrupção da Ilha do Maranhão. Mas isso é outra história.

Senhora Conceição, cultura da Mata Norte é Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil

domingo, dezembro 7th, 2014

 

Dezembro avança com poucas chuvas e muitas festas, como as que os católicos realizam em honra da mãe de Jesus. A tradição que admite a concepção sem pecado é muito antiga, bem mais antiga do que essa Igreja em seu louvor, construída, em 1887, quase no centro histórico de Goiana. Interessante é que, construída em plena chegada da indústria em Goiana, o templo foi construído seguindo o modelo barroco.

Embora presente na tradição desde o século  II, apenas no século XIX, 1854, é que veio a ser definido como dogma, o nascimento imaculado da Mãe de Jesus. Era o tempo de contrapor o mistério da fé ao secularismo prático dos tempos incertos da Revolução Industrial, da Unificação italiana.  A fé está sempre em diálogo com o mundo, pois diálogo não significa redução do outro ao mesmo, mas, o reconhecimento das diferenças sem desejar destrói-las.  Devoção romanizadora, a Conceição substituiu, substitui ou fez diminuir a devoção à Senhora do Rosário – a dos Homens Pretos e a dos Homens Brancos. Muitos foram os “filhos do Ventre Livre” amadrinhados por Nossa Senhora da Conceição. A mãe de meu pai era Florinda da Conceição e ele era seu afilhado de batismo.

Muitas são as Marias da Conceição, ou Conceptas, de acordo com a classe social. Em samba canção famoso, de autoria de Jair Amorim e Dunga, Cauby Peixoto lamenta  que Conceição desceu do morro pensando em subir na vida e, depois de muitas andanças no asfalto da cidade, sonha em voltar a ser Conceição.

No Recife, a Nossa Senhora da Conceição do Morro, também conhecida como Nossa Senhora do Morro da Conceição, passou a ser reconhecida como Padroeira da Cidade, a despeito  de Santo Antonio, Sargento protetor da cidade desde os tempo da colonização portuguesa e, também a despeito de Nossa Senhora do Carmo, também protetora da cidade, a pedido do comércio modernizado na segunda metade do século XIX e início do século XX. A Virgem da Conceição virou a Santa dos pobres dos morros do Recife, morros que foram habitados pelos “bestializados” no processo da República comandada, em Pernambuco pelos senhores das terras, dos engenhos, das usinas. E ao longo do século XX, A Conceição foi sendo, também, Iemanjá. Tangidos pelas estiagens e pelas modernizações conservadores, os trabalhadores da cana desceram da Zona da Mata Norte e foram fazer companhia aos retirados dos mangues e dos mocambos, pela política de higienização e pela exploração. Ali, ao longo do século XX, encontram-se as criações dos trabalhadores rurais e urbanos. Os senhores que viviam nos sobrados e nas casas senhoriais, governavam Pernambuco e definiam o que era ou não cultura. Com certo cuidado, eles conviviam com o Maracatu Nação, herdeiro das procissões da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e, com auxílio de antropóloga americana, não foi muito difícil acatar o Maracatu de Baque Virado como expressão cultural. A mesma antropóloga, contudo, não conseguiu vislumbrar o que está no movimento do maracatu rural, a ponto de lamentar a sua presença no carnaval do Recife. Ainda nos anos de 1990, editores do Jornal do Commercio denunciavam o “cheiro de urina” deixado pelos caboclos de lança e “o brilho falso das lantejoulas”. Mas os “bestializados” da Zona da Mata Norte organizaram-se na Associação dos Maracatus de Baque Solto, sob a liderança de Mestre Batista, do Mestre Salustiano e do Mestre Biu Hermenegildo, e continuaram a conquista das ruas e das cidades. No final dos anos 90  o Diário de Pernambuco já diz “uma das mais belas representações de nossa cultura é feita de homens simples e resistentes  e mulheres fortes e com coragem invejável, espalhados pelos 87 maracatus de baque solto de Pernambuco”. A primeira década do século XXI foi marcada por publicações sobre o as tradições culturais da Mata Norte:  “Maracatu Rural, o espetáculo como espaço social” (Ana Valéria Vicente); “João Manoel e Maciel Salustiano, três gerações de artistas populares recriando os brinquedos de Pernambuco (Mariana Cunha Mesquita do Nascimento) “Festa de Caboclo”, “Maracatu Estrela de Ouro de Aliança, a saga de uma tradição” (Severino Vicente da Silva) foram postos a público em 2005, e também “a mulher no maracatu rural” (Tamar Alessandra Thalez Vasconcelos), em 2012. Outros estudos acadêmicos foram e continuam sendo realizados sobre a criatividade da população cortadora de cana da Mata Norte.

Ao final da Olimpíadas de Londres, o Caboclo de lança foi apresentado ao mundo como símbolo do Brasil e neste 3 de dezembro foi estabelecido que o Maracatu de Baque Virado, o Maracatu de Baque Solto e o Cavalo Marinho, todos filhos da criatividade dos povos da Mata, passa a ser, oficialmente, Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

Só temos que agradecer a nossa Madrinha, Senhora da Conceição, também louvada como Iemanjá.

ps. Todos os livros citados foram publicados pela Editora Associação Reviva. Olinda, PE

A celebração da humanidade

sábado, novembro 2nd, 2013

 

A COMUNHÃO DA HUMANIDADE

 

A passagem para novembro é momento interessante, pois que nos põe em contato muitas tradições que tocam e fortalecem nossa humanidade,  esses aspectos e costumes comuns que nos tornam bem mais semelhantes que nossas individualidades e características identitárias supõem e nosso autocentrismo deseja. Tradições celtas comemoram a passagem como uma celebração Druída, com as bruxas a celebrarem a vida, uma das muitas celebrações da fertilidade da terra, doadora da vida. Com muita inteligência a igreja cristã fez celebrar um dos seus dogmas mais belos, o da Comunhão dos Santos, no primeiro dia de novembro. Celebração que pretende auxiliar a reflexão sobre a unidade humana, os Santos que já viveram seu momento na terra, os Santos que ainda estão na peleja do tempo presente e aqueles que já estão vivos nos desejos dos viventes e que virão e todos estão presentes no festejo da eternidade.

Entretanto se a semente não morrer não dará frutos e a vida é essa celebração constante da recriação que passa pelo sofrimento da separação momentânea. No período medieval europeu as dúvidas pareciam dominar o mundo por conta de tanta peste e, apesar do otimismo da Ressurreição, o medo transformou a momento da morte em Dia de Ira e de Calamidade, quase esquecendo que ela é o momento do encontro com o Ser. Um monge, em clausura beneditina, após a morte de um irmão passou a celebrar esse aniversário, como se costumava fazer na data dos martírios dos primeiros cristãos. Nessa celebração é a vida que é o centro, a lembrança dos momentos vividos antes e os que serão eternos quando o reencontro ocorrer. Assim foi nascendo o Dia dos Finados, no dia seguinte ao dos Santos. Essas tradições transplantadas para as terras americanas mesclaram-se com alguns ritos daqueles humanos que já estavam a viver nessa natureza e que em tudo experimentava a presença da divindade. Os espíritos das Matas, protetores dos animais: sacis, boitatás, iaras, anhanguera, caiporas juntaram-se aos orixás carregados no coração de africanos que aqui encontraram novos rios, cachoeiras, matas e celebram desde então, às vezes de maneira sincrética, às vezes na pureza que se pensa ter, a vida. E tudo parece confluir no início deste novembro.

A festa da Comunhão de Todos os Santos está sendo, no Recife, emulada por uma Marcha para Cristo, promovida por várias igrejas evangélicas no dia dos Finados e antecede em vinte quatro horas a celebração dos Orixás que pretende juntar o “povo do santo” em uma afirmação de sua existência e identidade, marcando o início do dito Mês da Consciência Negra, para nos lembrar que somos todos os continentes, todos os povos: somos a vida.

Escrito em 2 de novembro de 2013