Severino Vicente da Silva
Sabemos pouco de nosso corpo, quase não o vemos. Estamos nele, somos ele, com facilidade, nossos olhos só percebem as extremidades. É necessário que haja uma pancada, um desassossego exterior para que o percebamos. Um tropeço que provoca dor me faz lembrar que tenho pés, embora antes do tropeço, nem sentisse que todo o meu corpo caia sobre ele. Nem prestamos atenção ao nosso corpo, exceto quando o utilizamos em demasia, e, cansado, ele reclama, responde devagar ao que desejamos. Na maior parte do tempo nem pensamos que somos o corpo que carregamos e nos carrega. Parece estranho, mas pode ser que seja assim.
Também sabemos pouco de nossos vizinhos, de nossa rua. Passamos por eles e não sabemos que ele mora no outro lado da parede. Às vezes o percebemos quando ele reclama do som que produzimos em excesso porque estamos excitados com alguma música, ou qualquer outra coisa. Como o atingimos sem o ver, nosso vizinho vem reclamar. Como aquela dor que nos lembrou da existência do dedão do pé direito. Talvez tenha sido pelo barulho que nosso vizinho veio a saber de nossa presença ou existência. São as situações de desconforto que nos oferecem a possibilidade de saber que existimos, que a rua na qual andamos tem uma existência e que nosso vizinho existe. O comum parece ser a inconsciência. As situações vexatórias é que nos provocam a tomar ciência, conhecimento do que nos rodeia.
Durante muitos anos a sociedade brasileira não sabia da existência de negros, no seu interior e no seu entorno. Como se dizia, com a simplicidade de uma avó, na cadeira de balanço de sua varanda: eles sabiam o seu lugar. Não incomodavam. É o mesmo sobre os pobres, eles moravam longe, não incomodavam, não criavam situações vexatórias. Houve um tempo que todos sabiam qual era o seu lugar. Havia os lugares que mandavam e os lugares que obedeciam, ninguém criava problemas. Teve até um médico muito famoso que fazia letras para as músicas que compunha, que escreveu: eu sei ser pobre sem raiva e só sem tristeza. Afinal, sentir raiva de situações vexatórias é admitir que a situação não é normal, e o normal é a situação de inconsciência. Mas, disse outro poeta, que havia uma pedra no caminho. A pedra no caminho provoca desconforto e o desconforto pode levar à ciência, pôr fim à não consciência.
Faz algum tempo que ficou muito difícil não perceber que há negros e pobres no entorno, pois de tanto afastá-los eles chegaram até àqueles que não percebiam que, por ser redondo o mundo, quando se vai sempre em frente volta-se ao lugar da partida. Durante três séculos negros chegaram da África, contra a sua vontade, para ficar nesta terra plantando, colhendo, guardando, carregando sempre para quem nem os viam. Não se perguntava nada a eles, apenas se dizia: faça isso, faça aquilo. Eles se moviam, faziam tudo sem reclamar. Melhor dizer que não havia interesse em saber se eles tinham algo a dizer. Agora, como dizia outra avó, esta indignada: a gente dá o pé e eles já querem as mãos. A pedra no caminho, lembra outro poeta, parece dizer que não dá prá ser feliz, e começa a incomodar, obriga a tomar consciência, tomar ciência de que existem pobres, que existem negros.
Ao longo da nossa história os negros e pobres sempre disseram que existem, mas quem controlava a sociedade jamais interessaram-se por sua existência, exceto para toma-las, como foi feito a Zumbi, a Junduí, a Aimberê, a Antônio Conselheiro, a João Cândido, a Xicão Xucuru, a Manoel Fiel, e a milhares sem nome, fazedores de nossa história, que estes citados representam. Tomar consciência de que há negros no Brasil, tomar consciência de que há pobres no Brasil; tomar consciência de que pobres e negros são sinônimos na realidade brasileira; tomar consciência de que nada neste país existe sem o toque de um negro, sem o toque de um pobre; tomar consciência de que os brasileiros são, em sua maioria negros, mulatos, mestiços; tomar consciência de que somos negros é o objetivo maior da Semana/Dia da Consciência Negra.
O dia da Consciência Negra não é um dia para os negros, é um dia para que todos percebamos e aceitemos que somos negros; o Dia da Consciência Negra não pode ser um dia segregacionista, não pode ser entendido como uma festa na qual só negros são convidados a falar, só negros são convidados a dançar. O Dia da Consciência Negra é o dia para que todos nos tornemos seres humanos, ultrapassemos os limites que as sociedades passadas criaram e herdamos. Não queremos a herança racista, segregacionista; o Dia da Consciência Negra é para nos vermos, para tomarmos consciência de nossa humanidade, a humanidade que nós construímos a cada dia, nos esforçando para tornamo-nos conscientes de nós mesmos, e deixarmos de ser estranhos a nós.