Alguns pensamentos sobre minha mãe
Severino Vicente da Silva
Estou na sala de velório, ao lado do corpo de minha mãe. É uma situação semelhante à que vivi quando da morte de meu pai, pois então fiquei toda a noite em silêncio, esperando que chegasse a madrugada e, com o sol, viesse a minha mãe para preparar o corpo para a sepultura. Hoje não espero a minha mãe. Ela nunca mais virá com seus passos miúdos e jeito silencioso enquanto organizava o mundo ao seu redor. Ela sempre foi assim. Sua irmã Beatriz uma vez disse-me isso. Das filhas de Severino Cota e Alexandrina, foi a única que frequentou pouco tempo os bancos escolares.
Nascida em fevereiro de 1923, Maria Ferreira casou com João Vicente aos 16 anos e concebeu onze filhos. Apenas sete vingaram e cresceram. Formavam uma escada a cada dois anos, Josefa Maria, José Vicente, Maria José, Severino Vicente, Terezinha de Jesus, Antonio Vicente e, depois de muito tempo Jorge Cláudio. Apenas Jorge Cláudio nasceu em maternidade, todos os demais partos foram em casa, assistidos por parteiras. Maria cuidava da casa, dos filhos, do marido e ajudava na venda. Quando o marido ficou muito doente, cortando o solo na seca de 1952, ficou internado no hospital Pedro II, Maria ficou com as crianças e o comércio do marido na propriedade Boa Esperança, em Eixo Grande, na beira do Rio Capibaribe. Foi nesse tempo que o marido decidiu que os seus filhos não ficariam presos na terra e no cabo da enxada. Retirou-se com a família para Casa Amarela, no Recife, mais exatamente no lugar Nova Descoberta. Era o ano 1954. E era mais uma família migrante na Zona Norte do Recife.
João manteve o comércio e cuidava de criar os filhos. Maria cuidava da casa, do marido e ajudava na venda. Teve tempo para ajudar os padres Severino Santiago, Paulo Crespo e Inácio Vieira a organizar a comunidade católica na Capela Santa Terezinha. Animava a comunidade quando acontecia as Santas Missões, pregadas pelos padres Redentoristas, em 1956. Ajudou na construção da Igreja Matriz, fundou o Apostolado da Oração. Seus filhos estudavam, ajudavam nas missas, organizavam a Cruzada Eucarística e a Legião de Maria. Maria cuidava da casa, do Apostolado da Oração, animava a Conferência de São Vicente de Paula e viu ser criada a Paróquia Nossa Senhora de Lourdes de Nova Descoberta,no ano de 1959, e ajudava o marido na venda. Era última a ir dormir, mas às cinco horas da manhã começava o lenga-lenga para a criançada acordar e ir para a escola. Nunca faltou roupa limpa, nunca faltou a refeição no horário. Os filhos mais velhos foram matriculados em colégios particulares.
Maria Ficou contente quando seu filho Severino disse que queria ser padre. Toda semana preparava uma lata de doce de bata doce e levava para o filho no seminário da Várzea. Um dia o filho disse que ia sair do seminário. Maria ficou triste, mas jamais desencorajou o filho. Quando o marido exigia muitos dos filhos, ela dava um jeito de diminuir a dor deles. Mas o seu carinho não era derramado e pegajoso. Um carinho nas roupas da escola, as do cotidiano e aquelas usadas nos desfiles de gala nos dias Sete de Setembro ou nos desfiles dos jogos escolares que aconteciam no campo do Sport Club. Era um carinho sério que era transmitido pelo trabalho diário, nem sempre compreendido pelos filhos e filhas. Sofreu silenciosa as dores causadas pelo orgulho dos filhos e filhas. Não me recordo de ouvir sua voz levantada contra o marido nem sempre carinhoso, mas sempre dedicado à família. João e Maria foram um casal da tradição e da parcimônia, da bondade, da seriedade.
Não deve ter sido fácil atravessar o século XX, mas a bagagem de caráter e a entrega irrestrita à vontade de Deus deu condições a Maria Ferreira ensinar seus filhos e filhas, aos netos e netas, o caminho da retidão, do respeito, do amor. Às vezes as encruzilhadas da vida não deixam que as lições sejam aprendidas pela arrogância da juventude ou pelo luzir dos entretenimentos. Quantas foram as provas que a vida pediu a esta mulher! Uma vez, lembro-me, menino de 12 anos, no Seminário da Várzea preparei um presente para ela, no dia das mães. Comprei um livro, A Imitação de Cristo, fiz uma capa e entreguei. Nunca soube se leu, pois apenas sabia assinar o nome. Mas recebeu o presente com um riso e um abraço. Ela era muito econômica nos abraços. Mas ainda me lembro de minha insensibilidade em não notar seu limite na leitura e da sua sensibilidade em não me deixar perceber minha gafe. Quando ela já estava com sessenta anos começou a frequentar uma escola noturna. Algumas vezes a surpreendi com o lápis e caderno. Aprendeu muito, nos últimos anos cuidou de tudo com o seu tirocínio e fé inabalável no poder de Deus. Nenhum de seus filhos e filhas ouviu desespero quando a traquinagem de José Vicente, temeroso do castigo do pai fugiu de casa. João saiu pela cidade como um louco, eu o acompanhei a rádios e a muitas igrejas para promessas. José voltou e aconteceu a primeira grande festa da família, alem do São João, suas pamonhas e canjicas. Ah! Mamãe fez pamonha para a família até o último ano de sua vida. E as buchadas, os torresmos de galinha, os pés de moleque na folha de bananeira, os doces de coco com mamão, o café torrado no tachado e batido no pilão de assento. A comida que ela preparava tinha o sabor do céu, e gostava quando a casa estava cheia. Mas era o gostar silencioso, como o de Maria, a mãe de Jesus. Mamãe tinha o coração de Maria, pois tudo guardava no silêncio do seu coração.
Mulher disciplinada, sempre cuidou de sua saúde e da de muitos. Meu tio Abdias, figura difícil quando bebia – bebia muito – chegou em casa doente para ficar um tempo. Ficou muitos anos, tanto tempo dando todo tipo de trabalho, nunca saiu, exceto para morrer, e mamãe o preparou para a sepultura. No mesmo hospital Evangélico onde cuidou do corpo de sua mãe, Vó Xandina, a avó que tinha um riso manso, um colo doce da minha infância em Serraria. Mamãe também cuidou da sua sogra, a minha Vó Florinda. Cuidou de sua irmã Juliana que a gente chamava de Julinha e de seu irmão Sérgio Cota. E tinha um apreço especial pelo cuidado dos enfermos na paróquia. Todos os anos havia uma festa na igreja porque os doentes eram levados lá, os doentes que ela visitava com o viático.
E depois de crescer os filhos, também cuidou para que sua filha mais velha pudesse trabalhar e estudar com tranquilidade, pois dona Maria ficava com os netos e netas em crescimento. A casa que criara os filhos continuava a sua função de casa-mãe, lugar de permanente recriação de vida. A casa 1420 da Rua Nova Descoberta esteve sempre aberta para as novidades, com a aprovação sem alardes. Acompanhou seus filhos na aventura da criação do Conselho de Moradores de Nova Descoberta; recebeu estudantes de teologia vindos dos Estados Unidos, do Rio Grande do Sul, e do Rio Grande do Norte. Mamãe, mulher de silêncio, suportou a aventura de um conjunto de rock and roll, juntamente com o esposo, para o crescimento do filho. E como ficou desolada e temerosa quando o filho José entrou para a Marinha de Guerra e foi conhecer o mundo. E que alegria os almoços festivos dos retornos, como a feijoada que me recebeu após um ano nos Estados Unidos da América do Norte. E a alma da casa 1420 sofreu com a prisão do filho durante a ditadura militar, mas fortaleceu-se com o apoio que recebeu da comunidade que salvou os livros do filho. Apresentou diante das poderosas autoridades a mesma fortaleza com que defendeu o seu direito de voto quando enfrentou o marido autoritário que quis lhe impor a vontade. Dona Maria Ferreira sempre cuidou de não se deixar intimidar, nem mesmo quando uma certa “doutora” quis envergonhar seu filho. Ela cuidou de pôr a suposta aristocrata no seu lugar, ou seja, no lugar de respeito a Dona Maria Ferreira, que, com um pequeno comentário expôs a pouca sabedoria da douta senhora. Dona Maria, mulher religiosa, que recebeu Dom Hélder Câmara várias vezes em sua casa, jamais disso fez sua glória, mas sempre cuidou de todos com o mesmo respeito. Em sua casa também almoçou Dom Antonio Saburido. Seu exemplo de vida e hospitalidade deve ser doloroso para os que se julgam melhor por terem sapatos mais finos, embora seus corações sejam duros como pedras impermeáveis para o amor.
Muitas mulheres viveram as mesmas angústias de Mamãe, mulher nascida na Zona da Mata e que soube atravessar as grandes mudanças do século conflituoso e mudanças tantas que filósofos não conseguem acompanhar e se deixam cair dos andaimes de seus pressupostos e à mudanças mais radicais nos costumes. Olho para o seu corpo inerte e lembro da noite em que me procurou para conversar sobre os modos de minhas irmãs, pois não sabia como fazer para comunicar-se com elas. Mas teve outro momento, ela que não ia a festas, incentivava-me a levar as meninas para bailes, uma vez que o irmão mais velho não o faria. Mas esses eram movimentos tão sutis que quase nunca eram compreendidos pelos filhos. Como seu marido, dona Maria Ferreira conviveu com as diferenças mais improváveis, tolerando-as, aceitando-as. Sem discursos ideológicos, sem militâncias ostensivas abriu veredas diversas para seus filhos, e jamais cedeu no essencial, no respeito a cada um como Filho de Deus, como ser humano. A prática da caridade, quase sempre tangível na entrega de alimentos, roupas ou outros objetos, era mais que isso: era a caridade da visita, da preocupação com outro, de atender o pedido que não foi solicitado e, mais que tudo, jamais incomodar o outro com os seus problemas pessoais. Que força tinha essa mulher para aceitar mudanças de credos religiosos e políticos, no seio de sua família, sem que seu amor diminuísse! Como diz boa doutrina católica, só não é aceito aquele que não quer ser aceito na gratuidade, só não recebe o perdão aquele que exige condições para o amor. Como mulher religiosa e da boa doutrina católica, Dona Maria Ferreira era o sopro do Divino Espírito Santo
A morte do marido tornou explícito o espírito de uma mulher empreendedora. Continuou mantendo a família que crescia. Diminuiu suas atividades após o atropelamento que sofreu uma noite quando estava a caminho da igreja. Suas pernas começaram a ceder e ela perdeu a sua autonomia de sair sozinha. Comprou um carro para a filha, assim realizava dois sonhos: o seu e o da filha. Também cumpriu alguns desejos, como conhecer o Santuário de Nossa Senhora Aparecida.
Este texto não é a biografia de Maria Ferreira da Silva, é um monte de pensamentos que chegam à minha memória, olhando seu corpo inerte tendo ao peito a fita de zeladora do Apostolado da Oração, do qual foi fundadora em Nova Descoberta e sua presidente durante muitos anos. Custa crer que tantas atividades foram realizadas por este corpo, agora sem vida, e nem todos notamos o quanto elas demonstram uma mulher generosa, corajosa, sensível, humilde e agente da sua história e da história de sua comunidade, de sua igreja, do seu bairro.
Termino este texto testemunhando que a comunidade católica de Nova Descoberta conseguiu um ônibus para vir até Paulista e ser uma representação daquelas ações de Dona Maria Ferreira, da importância histórica de sua vida para aquela comunidade à qual ela dedicou-se desde 1954 quando ali chegou. Várias gerações vieram testemunhar a importância de sua vida. Como sempre acontece, as gerações seguintes não conseguem compreender de imediato a história. É sempre necessário tempo para que se possa compreender o tempo que passou no tempo que se está vivendo. Luiza, catequista da comunidade nos anos cinquenta e sessenta, atuante no movimento Encontro de Irmãos, não se conteve e lembrou que Dona Maria Ferreira fez história, disse que mais que missionária foi ela, Maria Ferreira, profeta da vida e da esperança; falou de que a caridade de Maria era a sua vida, a sua doação, e que ela foi um sopro de Deus entre nós. Um sopro desde 8 de fevereiro de 1923 até 4 de setembro 2012.
Que sejamos Dignos dela, como ela foi e é digna das promessas de Cristo.
Escrito no 5 de setembro de 2012.