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Uma vista técnica: uma viagem para ver o passado no presente

domingo, fevereiro 26th, 2023

UMA VIAGEM PARA VER O PASSADO NO PRESENTE.

Prof. Severino Vicente da Silva, UFPE; sócio correspondente do IHAGGO, sócio da CEHILA, sócio do IHO.

Após as delícias do carnaval, este mês terminou com uma experiência desejada, faz tempo: conhecer alguns engenhos da antiga Capitania de Itamaracá no município de Goiana. Quando conversamos sobre o Goiana, quase sempre nos voltamos ao seu passado e, mais explicitamente, sobre os seus aspectos externos, o material artístico, arquitetônico construído na parte central da cidade, os lugares para onde se dirigiam os que iam cultuar a sua religião, seus santos e seu Deus. Esses lugares importantes testemunhas da longa, e ainda curta, história dos brasileiros, refletem a riqueza que era produzida nos canaviais e engenhos desde o tempo que os portugueses tomaram para si as terras dos tabajara, dos caeté tantos outros povos que viviam na região. Mas ainda hoje esses canaviais são importantes fonte de riqueza para a município. Sempre quis saber onde estão, com estão, qual o segredo que hoje escondem esses canaviais que vemos da janelas dos ônibus ou dos automóveis particulares, ao cruzarmos essa BR 101. O que há além dessa paisagem?

O Instituto Histórico Arqueológico Geográfico de Goiana – IHAGGO, promoveu a realização desse desejo. No dia 25 de fevereiro, saímos em 20 pessoas para conhecer três engenhos: Miranda, Itapirema do Meio e Itapirema de Cima. Miranda é um engenho está localizado próximo à rodovia PE &@, na direção de Condado que, antigamente, era Goianinha. A Casa Grande que visitamos não é a original, e recentemente foi vitalizada, e apresenta mobiliário do século XIX e XX. Fomos recebidos com atenção pelos proprietário que, à medida que falavam da família, nos indicavam os pontos que eles organizaram para mostra, desde a sala de entrada até à cozinha. Observamos o cuidado na restauração do imóvel, ainda que não tenha sido recuperada com a assistência de restauradores profissionais. Há uma segunda casa senhorial, não recuperada, que apresenta melhor como se vivia no início do século XX em casa anterior à chegada do ferro e vidros. Esses apetrechos chegaram com os acenos da Revolução Industrial. Mais abaixo está situada a Moita, ou que resta dela, pois foi reordenada para ser uma cocheira, um recolhimento para os bois. Com a morte do fogo, o engenho passou a fornecer cana para as usinas, e fez o trajeto de mudança do carro de boi para o caminhão, como atesta a pequena oficina de manutenção próxima à casa do administrador. O Engenho Miranda também está mais conhecido pela particularidade de que, em sua capela, dedicada à Senhora Santana, encontra-se os restos mortais da família, especialmente de uma adolescente que tem sido cultuada como santa, a Xaninha, morta na epidemia ocorrida nos anos sessenta e setenta do século XIX. Dela é dito que tinha grande preocupação pelos escravos trabalhadores do engenho. Na segunda metade do século XX seu culto foi ativado e pequenas romarias eram realizadas duas vezes por mês, com missa, até o período da epidemia de COVID. Pelo que ouvimos, os proprietários estão interessados em tornar mais comum as missas, pois a presença de público  ajudaria a preservação do espaço.

E, seguida voltamos ao canavial e seguimos em direção ao Engenho Itapirema do Meio, onde chegamos já um pouco depois das 11 horas. As estradas de cana estavam molhadas da chuva recente, vimos que houve queimada recente, mas não encontramos nenhum caminhão de transporte. É dito que Dom Pedro II ficou hospedado nesse engenho, quando se dirigia à Goiana. Mas a casa grande que encontramos não reflete a antiguidade, esperada, mas parecendo ser uma construção do início do século XX, como pode ser observada pela data da capela, 1913, e pela chaminé da usina, que ostenta a data de 1937. Vimos que foi construída pequena vila para os trabalhadores no local onde pode ter existido a construção a que se refere a tradição, mas apenas escavações arqueológicas poderão sanar essa dúvida. A casa grande, não colonial, está sendo bem cuidada e não tivemos a permissão de nela entrar.

Foi Itapirema de Cima o  nosso terceiro destino, o que nos levou a atravessar o povoado de Sapé, onde pudemos observar, de passagem, a feira semanal, restos do posto de televisão comunitária que era comum nos anos de 1970, que hoje serve de praça. Notamos que o povoado é bem surtido em serviços como mercados, escola, manicure, barbearia, mercado municipal. Esse povoado, como outros da região da Mata Norte, é formado pelos descendentes dos escravos. Mutatis mutantes, essas periferias são as antigas senzalas, distantes dos olhos dos senhores que não desejam ver o que a cana produz com o açúcar, o melaço, a cachaça e o vinagre.

Após Sapé, seguimos pelo canavial até o Engenho, com sua majestática Casa Grande, construída acima de todos. Passamos pelo rio que fazia girara a roda da moenda do engenho, encontramos gado solto pastando e, chegamos à Casa Grande que só não está completamente abandonada porque seus proprietários contratam pessoas para lá viverem e evitar a sua destruição. Atualmente é um casal que cuida da casa que está quase em ruínas. Com andar térreo, local da oficina e onde teria sido posto um depósito de açúcar. Para ter acesso à parte superior, seja dizer, a residência, com mais de uma dezena de cômodos, subimos um escada com vinte degraus, de cada lado; abaixo do encontro dos degraus há espaço para um nicho onde, nos tempos de ouro, deveria ter sido a morada de algum santo protetor. Na parte posterior da casa grande está um pomar e a capela do engenho, completamente dominada por caca de morcegos, e parece ter sido transformada em local para guarda de fertilizante. Comi deliciosa goiaba, arrancada do pé por Josué.

Um brinde especial nos foi ofertado por Basílio Augusto que nos levou a um local que a tradição aponta como sendo o início de um túnel que teria sido construído pelos holandeses, ligando o Itapirema de Cima ao Engenho Ubu. São muitas as questões a serem levantadas em torno dessa tradição, baseada em escrito de Pereira da Costa que quase sempre oculta os sujeitos das ações e os documentos de onde tira as informações. Fala-se de minas de ouro, existência de vulcões, etc, mas tudo dito em frase de sujeitos ocultos, quais fantasmas. O buraco que vimos é capaz de passar o corpo de um jovem adolescente e tem a profundidade de cera de 1.70cm.

Agradeço aos amigos do IHAGGO pela oportunidade de conhecer o mundo que se esconde nos canaviais.  

Em cada um desses locais visitados foram lidos textos alusivos, ora pelo professor Bartolomeu e Victor Romanelli, tudo registrado pelas múltiplas câmeras de nossos fotógrafos.    

Paredes que contam história

domingo, julho 11th, 2021

PAREDES QUE CONTAM HISTÓRIA

Severino Vicente da Silva – Biu Vicente –

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Esperei o dia 10 de julho com o objetivo de participar de um evento que deveria ter ocorrido em dezembro de 2020, impedido pela pandemia que marca esta terceira década do século. Assim, após as vacinações necessárias, o Instituto Histórico Arqueológico Geográfico de Goiana, cidade cujas origens estão fundadas na Capitania de Itamaracá e que compõe a então Província de Pernambuco apenas no final do século XVIII, realizou mais uma etapa do projeto Paredes que contam história. A ideia básica da referida ação é, de maneia simples e visual, socializar acontecimentos, pessoas, instituições que fizeram a cidade, ao tempo que atualizam a memória da população local para a importância do passado no seu presente e, para o visitante, turista ou simplesmente um passante, expor informações que levarão consigo para seus lugares de origem. Com esse projeto, o IHAGGO demonstra o empenho de superar a distância que sempre marcou os espaços entre as instituições do saber organizado à moda dominante e as pessoas comuns que, premidas pela luta diária da produção dos bens materiais necessários à sobrevivência, não percebem que suas ações são as portadoras da história, e dela são alienadas. Assim, nas paredes ficam expostas, não apenas os nomes das ruas, logradouros, edifícios, mas o que eles significam por terem sido parte da construção social.

Neste dia 10 de julho, o IHAGGO celebrou, no espaço de um antigo porto fluvial, um braço do Capibaribe Mirim, o Canal de Goiana, uma parede em homenagem às Pretinhas do Congo de Goiana. O local é mais conhecido como o Baldo do Rio, habitado por gente pobre, quase todos afrodescendentes, como está exposto em suas peles negras. No início do século XX ali eram os fundos do Fabrica de Tecidos e Linhas de Goyana, marco de uma tentativa de industrialização de Pernambuco, uma das primeiras a criar as Vilas Operárias, casas para os trabalhadores, o mesmo modelo para todos, porém diferenciando das residências dos funcionários administrativos e da direção da companhia. Era um esforço dos industriais, alguns de antigas famílias proprietárias de terra na região, bem como de comerciantes bem sucedidos em caminho de ascensão política. A fábrica apontava um novo caminho para Goiana e para o Estado, juntando-se às usinas de produção de açúcar de cana que substituíram os engenhos. Com operariado crescente, Goiana chegou a ser local de encontro operário nacional, sendo que um dos seus párocos, Padre Távora, ser posteriormente cognominado de Bispo dos Operários.

Um dos orgulhos goianenses é que sua Câmara foi a primeira, em Pernambuco, a abolir a escravidão, mas o Baldo do rio é uma mostra de que, como no restante do Estado e do país, pouco se cuidou da integração dos trabalhadores libertados pela Câmara em fevereiro, e pela Princesa Isabel em maio de 1888. Aliás, um dos cantos da Pretinha é de louvação à filha do Imperador Pedro II. Como frisou um historiador, era o curso de uma “modernização conservadora”, que mantinha o padrão de atender o interesse de uma pequena parcela da população, e a riqueza gerada não foi razoavelmente distribuída pela população local, de modo a não provocar crescimento real do mercado interno; além disso, não foram incorporadas as modificações técnicas geradas no campo externo, levando à consolidação das estruturas tradicionais, por isso, apenas uma parte superficial da sociedade pode acumular a riqueza promovida pela indústria, aumentar a acumulação das riquezas e, quando assim não o faziam, apenas assistiam a troca de mando nas riquezas, com a venda dos engenhos de fogo morto, as usinas e o maquinário incapaz de concorrer com as modernas e constantes mudanças na produção. Coube aos mais pobres, aos homens e mulheres livres da escravidão em 1888, estabelecer moradia nos espaços do maquinário que ficava mais próximo do Canal de Goiana, aquele lugar esquecido, um Baldo.

Mas muito antes dos acontecimentos dos anos cinquenta, quando o parque industrial do Sudeste crescia e engolfava as tentativas industriais das demais regiões, nos anos trinta, preocupado com as crianças que viviam sem escolas, sem lazer e com futuro ameaçado, um homem que trabalhava na fábrica deu início à tarefa de oferecer algum sentido à vida das meninas afrodescendentes que viviam perambulando à beira do braço do rio Capibaribe Mirim, e criou a Pretinhas do Congo. Alguns anos depois, talvez premido por pressões políticas, entregou a tarefa a seu Pirrixiu que a transferiu para a filha e a ‘Heleno’. Atualmente a Pretinhas do Congo estão sob a responsabilidade de seu Val e de Rosa. Cuidar das crianças antes que a sociedade dominante pensasse no Estatuto da Criança e dos Adolescentes, é o que nos ensina o criador da Pretinhas do Congo. Se é comum encontrar a consciência de que a República foi proclamada sem considerar necessária a participação do povo, costumo dizer que o povo fez sua república, continua fazendo a república que a todos deseja incluir. Assim é que a Pretinhas do Congo, agora reconhecida como Patrimônio Cultural de Pernambuco por iniciativa de Willemberg Francelino, recebeu alegremente o IHAGGO para a inauguração da placa que conta um resumo da história da Pretinhas do Congo. É um momento de contato, para além das apresentações carnavalescas, entre duas instituições culturais da cidade, o reconhecimento mútuo de que carecemos muito fazer para que nossas repúblicas se tornem uma república de homens e mulheres livres e amantes da liberdade, a todos acolhendo.