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Encruzilhadas civilizacionais

sábado, fevereiro 11th, 2023

Encruzilhadas civilizacionais.

Prof. Severino Vicente da Silva

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A vida pulsa de maneira tão inusitada e, ao mesmo tempo, parece repetitiva. Há milhares de anos que a terra se move e se agita. Move-se silenciosamente no espaço, seguindo uma rota que lhe é própria em meio a uma imensidão de outros corpos, que se atraem e se repulsam. Internamente, contudo, ela é pura agitação, movimentos dos quais não temos conhecimento imediato e, vez por outra explode em forma de vulcões terremotos. A terra se move e não nos pede licença. Também, para organizar-se em culturas e civilizações, os seres humanos não pediram licença para sulcar a terra, modificá-la externamente com o objetivo de produzir alimentos, levantar casas, abrir veredas, controlar o movimento das águas e dos ventos. Os primeiros séculos de convivência dos humanos com a terra, da qual eles fazem parte, parecem ter sido mais tranquilos que os dias de hoje. Apenas parece, como nos deixam entrever as tradições que os povos antigos deixaram em algum tipo de suporte documental. Sabemos da fúria de Posseidon, dos dilúvios presenciados por Gilgamesh e Noé, dos monstros que se alimentavam de humanos.

Nos últimos trezentos anos a ação dos humanos sobre a terra tem sido aumentada e, novas modos do que fazer para manterem-se vivos, fizeram os grupos humanos modificar o relacionamento com o que costumavam chamar de Mãe Terra, Pachomama, e outras maneiras carinhosas de reconhecimento ao lugar onde viviam. E lhe prestavam culto. Perdeu-se a ternura e o jeito poético de conviver com a natureza. Gilberto Gil chamava os poetas e os namorados para cantar “talvez as derradeiras noites de luar”.  E, se as religiões mostraram que os homens deviam reconhecer-se na natureza, as tecnologias que foram sendo criadas para garantir a sobrevivência dos humanos, começaram a ferir a natureza, a terra, distanciando-se dos afetos que uniam homem e terra, a ponto de começarem justificar o estranhamento, a separação, rompendo os laços amorosos que as primeiras civilizações haviam se permitido.

Ao distanciar-se da terra e não se ver mais como parte integrante dela, os humanos começaram a aprofundar a separação entre eles mesmos e com a terra; rompendo esses laços estabeleceram entre si relações de exploração, de dominação, cuidando para que a cooperação que sempre existiu, passasse a ser vivida apenas visando os interesses imediatos do seu grupo imediato. Quase nunca se percebe os efeitos dessas opções. A terra emite, vez por outra, reações que tornam explicitas as consequências das relações desrespeitosas mantidas por grupos humanos contra seus outros grupos humanos. A exploração sem limite das possibilidades da terra por um grupo, faz crescer o egoísmo que as religiões e as filosofias tentaram suprimir ou domar. As consequências dos terremotos recentes, no Haiti e na Síria e Turquia, matam tanto quanto os passado, e explicitam as condições em que viviam os milhares de mortos.

Uma imagem que ficou na minha memória foi o contraste do vestuário do presidente/ditador da Turquia com o vestuário dos que  viviam nos edifícios que foram abaixo, empurrados pelo movimento das placas tectônicas em movimento. O terremoto é natural, como foi o que destruiu parte de Lisboa, o que afetou as instalações nucleares do Japão, bem como a explosão que guardou Pompéia.

A formação e a expansão das culturas, processo de transformação da natureza para garantir a sobrevivência dos humanos tem um preço altíssimo pois, a longa infância dos filhotes humanos exigiu um esforço maior para garantir a sobrevivência das crias que chegavam, um aperfeiçoamento na forma de conseguir alimentos e, como nas demais espécies animais, cuidar defender-se daqueles que, não tendo conseguido os alimentos necessários para si e para os seus, procurou o alimento já coletado. Creio que aqui está a principal encruzilhada da vida humana: dividir o que tem ou manter para si deixando o outro à morte. Esta é a tensão da humanidade entre o altruísmo e o egoísmo. A crescente acumulação de riqueza por alguns em sido a resposta dada pela humanidade, como demonstrado está na organização das primeiras civilizações, onde quer que elas surgissem. Um grupo conseguiu ter acesso ao produto do trabalho de todos. Esse processo acelerou-se mais nos últimos três séculos. Aceleração causada pela organização do conhecimento, um trabalho quase sagrado ao qual poucos tinham acesso provocou a organização de bibliotecas em suas diversas formas, selecionando o grande saber que deveria ser mantido, e este veio a ser privilégio de alguns, justificativa do poder, e o conhecimento que restou à maior parte da população, foi o conhecimento básico necessário para a reprodução da vida. A complexidade dos saberes atingida pelo que vem sendo criado pelas sociedade, ampliou a divisão social e restringiu o saber para poucos.  Consolidou-se a sociedade que separa. Decorre daí a interminável a tarefa de convencer os humanos que a terra é de todos. Muitos que travam esse combate prometendo que está organizando um grupo de pessoas para promover o fim das exclusões, logo que são aceitos nesse processo começam a agir de forma semelhante ao que pretendem mudar, passam a vestir o costume daqueles a quem diz querer modificar. Costume é uma palavra que remete a vestuário. Pelo costume você sabe qual é o costume que virá a se manter. Pequenas e médias mudanças ocorrem neste processo, e elas garantem a continuidade da vida. Mas não sem sofrimento. Enquanto refletia sobre as mudanças ocorridas nos século XIV a XVI na Europa, especialmente sobre o processo da expansão europeia e do processo de evangelização, uma jovem percebeu que esses são aspectos do mesmo processo, então  a pergunta é: o que está acontecendo, em nosso tempo, com o povo Yanomami não será o mesmo processo que ocorreu com os Caeté, Tabajara, Aymoré e todos os povos que viviam em Pindorama (Terra das Palmeiras, para os Tupi), para a América pode ser Abya Yala (Terra em florescimento ou Terra viva, para os Kuna, povo que vive no Panamá). O processo de ocupação e destruição da terra que ocorre em Rondônia não tão dessemelhante do que ocorreu nas Gerais dos séculos XVII e XVIII.  E o comportamento dos garimpeiros, com exceção da tecnologia mecânica, não difere muito do modo de fazer utilizado pelos bandeirantes que, dizem os livros guardadores e transmissores do saber, fizeram os limites do Brasil. A destruição da terra vem sempre acompanhada da destruição dos homens.

 E é esse o paradoxo que vivemos nos dias atuais: viver na compreensão que devemos deixar a terra viver para que possamos viver nela. Talvez, se conseguirmos diminuir o grau de exploração dos humanos, diminuiríamos o grau de exploração da terra aumentaríamos o antropoceno. Mas isso significa mudar a civilização. Faremos isso?

Olinda, dia de Nossa Senhora de Lourdes, cuidadora dos enfermos.  

11 de setembro: os germes, as armas, as civilizações

domingo, setembro 12th, 2021

11 de setembro, os germes, as armas, as civilizações.

Prof. Severino Vicente da Silva

No mesmo ano em que ocorreram as lembranças de duas décadas do atentado, bem sucedido, que derrubou os maiores edifícios de Nova York, também foi visto a derrota dos Estados Unidos da América do Norte ao admitir que fracassou na tentativa de impor o seu modo de viver a povos de outra tradição. A saída arrumada por um presidente republicano e posta em prática por presidente democrata, torna claro que o fracasso foi do Estado. O 11 de setembro de 2001 demonstrou que as agências de segurança não conseguiram perceber o que se preparava, dentro dos Estados Unidos, contra os Estados Unidos. Sabe-se, hoje, que o arquiteto e financiador das ações de setembro 2001, era amigo da família presidencial, que então passou a ser perseguido até à morte. No meio tempo começou uma guerra que demostrou pouca inteligência ao tornar todos os habitantes de diversos países inimigos, menos o país de origem do financiador do “projeto Torres Gêmeas”. Os sauditas pouco ou nada sofreram, diferente do que ocorreu com o Iraque, o Afeganistão e outros que estavam minando o campo das relações sauditas-estadunidenses.

Nesses vinte anos iniciais do século XXI, o confronto cultural fortaleceu os setores mais conservadores das nações, e em todas elas assistimos o retrocesso nas relações humanas, políticas, pessoais e religiosas.  A enorme quantidade de livros de autoajuda, a imensa quantidade de sábios a ensinar a melhor maneira de viver, são sinais explícitos dessa tendência, desse fracasso civilizacional que assistimos e, de alguma maneira, dele participamos. Quem leu os estudos de Jared Diamond Armas. Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas, compreenderá que pouco difere a ação do então presidente dos Estados Unidos da América daquilo que ocorreu entre os humanos nos primórdios de sua ação sobre o planeta e sobre os seus semelhantes, que também estavam se organizando para viver. O que os acontecimentos deste início de século e milênio nos dizem é que aprendemos a usar com mais habilidade os germes, aperfeiçoar os metais e a prática da guerra. A guerra realizada para impor uma maneira de compreender o mundo continua a ser o modo mais usual das ações dos grupos humanos organizados em clãs, tribos, nações ou estados; é usada para tornar claro ao grupo mais fraco, aquele que não conseguiu dominar os metais ou aperfeiçoar seus usos como instrumento de trabalho ou arma mortífera,  que só lhe resta duas alternativas: adesão ao novo modelo que lhe é apresentado ou resistir até a morte na defesa de si mesmo e, aos sobreviventes o tratamento de desconhecimento de sua humanidade, ficará na periferia, como lixo descartável.

A formação de sociedades mais complexas nas quais vivemos ou delas temos conhecimento, sempre produziu esses resíduos humanos indesejáveis que, vez por outra são mortos em ações mais ou menos aceitas pelos sócios, sempre prontos a justificar com suas religiões e/ou filosofias. Claro que se sofisticaram os meios e métodos de explicação para o não reconhecimento da humanidade desses sobreviventes. Daí os livros de autoajuda, as sociologias, as teologias, as constantes revisões históricas, as psicologias, etc.

Outro fator que se repõe neste início de século milênio, são os germes, esses companheiros de vida e morte, de difícil compreensão pois que estão fora dos nossos olhos, sabemos de sua existência, sentimos sua presença de maneira mais sensível quando adoecemos. Reclamamos explicações para as doenças, e sempre nos foram dadas pelas religiões: são mal olhados, são possessões demoníacas, são espíritos malignos, encostos, pragas, castigos divinos, e tudo mais que a imaginação e medo provocam. Desde final do século XV que a ciência racional, científica, vem buscando compreender a origem, função desses seres invisíveis com os quais convivemos e, em determinados momentos e circunstâncias levam à morte, quase sempre de modo individual, mas também pode vir de maneira coletiva, como estamos a experimentar mais uma vez, como forma endemia ou pandemia. E como o problema é coletivo, mas os livros de autoajuda são para indivíduos, cá estamos em uma enrascada à Simão Bacamarte.

Neste setembro assistimos mais um capítulo do atual Simão Bacamarte, gestor na Itaguaí atual, apoiado por assessores internacionais, que expôs a produção do medo ao máximo para impor seu modo de viver, ameaçando, com invisíveis bacamartes e fuzis, colocar a todos na famosa Casa Verde, agora acrescida de amarelo.

E em meio a tudo isso, há um debate sobre a Grande Imprensa que faz “narrativas”, como se, em algum tempo a imprensa foi efetivamente “portadora da verdade”. A sequência de manchetes na imprensa francesa entre a fuga de Napoleão e sua chegada a Paris nos dá uma pista para pensar sobre a ruindade da imprensa atual, e a relação entre a imprensa e o poder.

Perde-se mais que vidas individuais

segunda-feira, abril 26th, 2021

Perde-se mais que vidas individuais

Esta manhã o repórter me informa que os gastos do poder legislativo federal com viagens e despesas que fazem para que sejam pagas pelos impostos dos brasileiros foi superior ao orçamento que da Fundação Osvaldo Cruz -FIOCRUZ, órgão do Estado para pesquisar, conhecer e melhorar a situação da saúde dos brasileiros. O egocentrismo, o egoísmo, dos nossos legisladores os fazem capazes de se entenderem superiores aos demais cidadãos. Eles, apesar de terem sido eleitos para representar o povo e legislar em seu interesse, resolvem usar o poder que lhes é concedido por algum tempo para criar benefícios para si e para os seus áulicos. Mas eles são o reflexo da civilização da qual fazemos partes e, terrível dizer, dividimos com eles esse mesmo egoísmo, esse mesmo desprezo pelo bem comum. Nascemos e vivemos em uma sociedade que decidiu não viver coletivamente, mas em ajuntamentos; não mais viver como comunidade, ou seja, ser um grupo de pessoas que decide viver juntos e perseguir os mesmos ideais de buscar uma felicidade comum. Aprendemos e fortalecemos a ideia de “farinha pouca meu, pirão primeiro” em lugar de “a farinha está pouca, vejamos como pode chegar pouco para todos”. Descartou-se de tal forma a ideia de comunidade, que atualmente ela é aplicada às favelas, àquele grupo de pessoas a quem são negados os direitos de uma habitação digna, acesso à água, à iluminação, à educação escolar, à diversão, ao corpo e espírito saudável. É isso que ouvimos quando os noticiários informam que “as comunidades pobres se organizam para se ajudar”, e dizem isso deixando claro que aqueles que vivem nas favelas não fazem parte de seu mundo, o mundo limpo dos condomínios fechados por serem temerosos de que as pessoas das “comunidades” os ataquem e tomem um pouco do muito que eles possuem. É este comportamento que leva à morte a civilização criada pela Europa nos últimos quinhentos anos. Ou mudamos esta visão do mundo ou não teremos um bom futuro.

A pandemia do COVID19 tornou mais claro essa opção pelo bem estar particular e individual dos setores que não fazem parte das “comunidades”, eles a assistem de longe e, quase se surpreendem quando algum deles é atingido. A pandemia mata mais os pobres que os ricos, cinicamente dirão: é que há mais pobres que ricos; a pandemia mata mais negros que brancos, e de novo dirão que há mais negros que brancos. Ficam preocupados porque o comércio diminuiu, que algumas empresas foram à falência. Não sei bem os dados sobre o Brasil, mas nos EUA foram as empresas pertencentes a negros as que mais fecharam. Esses que julgam não precisar dos demais companheiros sociais, que acreditam na grande fake do self made man, ainda não entenderam que não é apenas uma escolha entre a economia e a saúde, mas é uma escolha sobre uma maneira de compreender a vida e, que a obsessão em negar a inevitável cooperação entre os homens pode vir a acarretar na aceleração do processo de destruição da vida humana, pois a vida humana, como as demais vidas que formam a vida, só é possível na visão comunitária. A preocupação com o lucro sobre o sofrimento do outro impede que se pense na suspensão das patentes. O que fazem os grandes laboratórios, assistimos nos mercados ao acompanhar pessoas que compram o que não necessitam, e lamentam não estarem indo aos restaurantes que, diariamente, jogam restos de comida no lixo.

A pandemia do COVID19 explicitou que a maioria dos humanos, ou uma grande parte desses humanos, são capazes de usar, fabricar, sonhar coisas, mas ainda não perceberam que ao dedicar-se apenas às coisas, coisificaram-se, perderam a capacidade de recriar-se como novos seres abertos para a vida; optaram pela morte. A pandemia que estamos sofrendo confirmou o que pensaram os líderes nazistas: se dermos oportunidade ao mal ele terá mais adeptos e enganará a muitos. E assim temos a ressurgência do julgávamos ter aniquilado naquele bunker em Berlim, mas muitos escaparam dos bunkers, muito continuaram mentindo, e nesse espaço de dois terços de século voltaram a ocupar espaços e, como disse o profeta: quando um demônio é expulso, volta e encontra espaço, ele não volta só, vem com uma legião.

Nossa tarefa agora é vencer a pandemia e a legião que se apossou do coração de muitos. E para combater o mal só tem um caminho: o exercício do bem.

Severino – Biu -Vicente da Silva  

Tempos no tempo das pestes

segunda-feira, abril 19th, 2021

Tempos no tempo das pestes

Prof. Severino Vicente da silva

Entramos na vida quando ela já se desenrolava nos espaços e no tempo através dos tempos. Somos membros dessa incessante corrente que se renova a cada instante, somos como um instante, mas alguns de nós escapam de ser apenas um instante. O instante é tão passageiro, como os quase cem anos que agora podemos viver. Houve um tempo que este instante era menor para todos, mesmo os mais aquinhoados pela fortuna, poucos ultrapassavam a marca dos cinquenta anos vividos. Era um tempo de vida pequeno, vinte, trinta, quarenta anos. Tudo era tão rápido que era uma bênção divina ver os filhos dos filhos, ser avô, ser avô. Morria-se com mais facilidade, seja pelo teor violento da vida, como ensinava Huizinga, seja por não ter tido tempo de afeiçoar-se aos filhos, pois que eles morriam muito cedo, como ocorreu a Montaigne.

As guerras foram, ainda são, companheiras permanentes dos homens. Eram muitos os que morriam de espada em punho enquanto outra espada transpassava seu corpo. A vida era acompanhada diariamente pela morte, quase uma simbiose. Matava-se em todos os lugares, ainda hoje é assim; mas na bela Florença renascentista, os Medici foram atacados dentro de uma igreja, durante uma cerimônia, mas o que não foi morto perseguiu aos que tentaram mata-lo e os enforcou, deixando seus corpos apodrecerem, pendurados nos janelões da casa da Senhoria. O jovem Leonardo da Vinci aproveitou a oportunidade para registrar as expressões dos mortos, quase como os fotógrafos dos jornais do século XX faziam, o que atraia muitos leitores para olhar “a vida como ela é”, e como se acaba para todos. As fotografias permitiram que se guardasse a última visão do defunto antes de seguir para o cemitério. Guardava-se o último retrato como relíquia familiar. Era um bom costume da época vitoriana que se praticava ainda na sexta década do século XX em algumas cidades do Interior do país. Matou-se muito no século XX, em intermináveis guerras para acabar com as guerras, para acabar com a exploração, criar um mundo novo, e foram tantas as razões criadas para matar; matava-se para defender a vida, estabelecer um código, um projeto que garantisse o direito de nascer, viver, morar, trabalhar, ter uma família, receber proteção, ter um país, receber educação, receber cuidados com a saúde.

O final do século XX foi o tempo da criação dos direitos, agia-se como se fosse um esforço para chegar ao convencimento de que os seres humanos podem ser bons, felizes e que podiam comprometer-se em jamais voltar a produzir tantos sofrimentos, como os inventados nos diversos campos de concentração de gente posta a trabalhar até à morte, ou mesmo simplesmente postos lá para morrerem.

Talvez um dia se aprenda que os que fazem a história não caminham sempre na mesma direção, na mesma velocidade, com mesmo entusiasmo. E há sempre, ao lados dos construtores de possibilidades para se viver de uma maneira menos violenta, aqueles que preferem que tudo continue como estava, pois as mudanças previstas implicam em perdas para si: além disso, criar um mundo novo acarreta muito trabalho, muito esforço, melhor deixar como estava, um mundo em que alguns poucos poderiam viver um pouco mais que o restante da humanidade, pois deviam dedicar seu tempo para beneficiá-los, por isso melhor deixar como estava: muitos sofrendo para a alegria de alguns. E se morressem nessa tarefa?

Provavelmente esse modo de pensar pode explicar porque não foi fácil descolonizar os povos e nações asiáticas e africanas. Após a guerra contra os nazistas, os europeus não perceberam que continuaram a tratar os não europeus de modo similar ao tratamento que os seguidores de Hitler, e assemelhados, dispensaram aos ciganos, aos homossexuais, aos judeus, aos comunistas, aos católicos e a todos que não eram eles mesmos. O pós-guerra, ao mesmo tempo em que parte da humanidade pretendia criar um mundo novo, os “costumes comuns” foram e continuam sendo um impedimento para este novo mundo. O Zé Ninguém não escutou William Reich e permaneceu forte na defesa de seu mundo de inveja, desejos irrealizados, e amor à morte.

Uma das guerras do século XX foi a guerra de libertação do povo do Vietnan, primeiro para afastar a França e, depois, os Estados Unidos da América do Norte. Esta guerra marcou o fim do encanto do americam way of life, ideologia que conquistou corações e mentes, vendendo um paraíso com os desenhos de Disney, o riso de Doris Day enquanto escondia as Vinhas da ira. O general Westmoreland, comandante das tropas americanas no Vietnan, a princípio dizia que “aquelas pessoas não tinham sentimento em relação aos seus mortos”, mas logo compreendeu que se não conquistasse os corações e as mentes daquele povo, a guerra estaria perdida. E a perdeu enquanto uma juventude celebrava uma era nova que seria de paz, a Era de Aquarius. Mas aqueles jovens de 1968 são sessentões hoje, e olham o mundo que herdaram e o que estão deixando em herança. O que faz a diferença entre 1968 e 2021, o que diferencia a vida neste terceiro milênio do modo de vida no século que passou e nos séculos todos que foram passados?

Todos concordam que materialmente estamos melhor situados que os avoengos, pois mais pessoas podem dormir mais tranquilas sabendo que a comida do dia seguinte está garantida, embora haja muita gente, mais da metade da população da terra, morrendo de fome nas esquinas de nossas cidades, da cidade de nossa moradia. Mas agora temos informações sobre o que acontece em todas as partes do globo, sabemos do que os movimentos da natureza, cada vez mais em choque com as criações culturais, reduzem casas, carros, estradas – de barro, ferro ou cimento e asfalto – à lama, forçando-nos a refletir não apenas sobre as condições dos homens, mas a condição desses homens e mulheres nos locais em que vivem, e que por eles foram construídos. Como as fortalezas, os castelos e os palácios protegiam os que diziam proteger os povos que mandavam à guerra, eram protegidos com guardas a impedir o acesso dos camponeses e artesões aos espaços das festas das cortes onde se praticava regras de convivência e o aperfeiçoamento das relações, também hoje há muros invisíveis que aperfeiçoam tal separação, fazendo que cada um saiba qual o seu lugar e seu papel na sociedade. Essa ordem segue padrões tão aperfeiçoados de separação que nem notamos, pois que somos ensinados a não perceber as diferenças, uma vez que os cortesões que fazem a crítica, quase sempre condenatória da espúria situação da maior parte da população, a fazem ao lado dos organizadores do invisível muro que separam os homens. Não notamos, os muros que, além de invisíveis são fluidos, como nos explicou o sociólogo polonês.  Tornam próximo o que está distante, um desvio ótico, como uma vara dentro de um lago ou rio. Uma ilusão de ótica, a ótica social e política.

Neste terceiro milênio pode ser que venhamos a viver um mundo falso que não precisa de muros a separar, exceto quando se quer proteger objetos, essas criações culturais que denotam poder, riqueza, avidez, ganância, beleza conceitual e tudo que auxilia a explicitar a separação.

Como em épocas anteriores estamos vivendo uma pandemia, uma reação da natureza à forma de nossa organização sobre o planeta e de nossa relação com os demais seres vivos, e mesmo os inanimados, e, como nos séculos anteriores, muitas são as mortes. Assusta a quantidade de mortes que vem ocorrendo diariamente; em algumas regiões do país, morre-se mais que nascem pessoas. Em nossa país será que, em algum momento, morreram tantos de uma só vez? Terá sido assim em Palmares, o Quilombo? E na Cabanagem? E no Arraial do Bom Jesus em Canudos? Na seca de 1877? Na seca de 1915? Na seca de 1970? Mas essas foram mortes distantes, no meio do mato, nos sertões, nas beiradas dos rios, mortes que soubemos depois, que estão nos livros de história ou literatura. Agora temos a morte que soma com a ocorrida na vizinhança, na própria família. E, como outras mortes, essas poderiam ser evitadas caso fosse outra a conformação da sociedade.

O vírus, Corona 1919, está a matar por razões semelhantes ao Cólera em 1864, ao Aedes aegipti que tem a Febre Amarela, o Dengue, a Chincungunha: a razão da concentração de riqueza de um lado e a dispersão/concentração de pobreza de outro. Em todos os casos, como na praga dos primogênitos do Egito, para que o filho do faraó morresse foi necessário a ocorrência da morte de muitos filhos dos que não eram faraós. Quantos filhos dos pobres devem morrem para que se morra o filho faraó?

O que diferencia a atual situação das ocorrências nos séculos anteriores, é que agora acompanhamos imediatamente o fato e as mortes, não é necessário esperar que alguém escreva um livro de história que, como sempre, contará apenas uma parte dos acontecimentos com a visão que se deseje fixar. Mas as informações chegam tão rapidamente e em tal quantidade que elas são regurgitadas, são negadas, são apagadas. E os que estudam a Psique aconselham a procurar outras informações para que não se perca a saúde mental, não se morra espiritualmente.

Daniel Defoe, escreveu o Diário da Peste, que ocorreu na Inglaterra do século XVII, tendo dela sobrevivido. Utilizando depoimentos dos seus contemporâneos nos mostra que eles não tinham ideia de onde vinha a doença e tomaram medidas de restrição social, aprisionando em suas casas os doentes que eram obrigados a conviver com o enfermo e com os ratos e suas pulgas transmissoras. Morreram muitos, e valas foram abertas para a incineração dos cadáveres. Lentamente os homens vão aprendendo que os bacilos, os vírus que provocam as diversas pestes, eles não morrem, mas como que se resguardam para quando surgirem outras oportunidades para o espetáculo mortífero e mortal.

Mas se existem as pestes físicas que destroem as sociedades em sua população, há pestes que destroem as nações em seu caráter, em sua moral, em sua essência, como nos ensina Camus, a peste da traição, da colaboração com a morte. Em todas as pandemias e epidemias sempre surgem os pestilentos da mentira, do ódio, da incompreensão, do esforço para evitar que s humanidade se aperfeiçoe.

Nestes dois anos de convivência com o Coronavírus 2019 temos tido conhecimento e experimentado esses dois tipos. Ambos se tornam mais poderosos com a ignorância, com o conforto que elimina a angústia, a companheira dos que procuram o saber. É o conhecimento que derrota, ao menos provisoriamente, as causas das pestes.

Drama 14 – Não consigo respirar

domingo, junho 28th, 2020

“Não consigo Respirar”, Uma frase simples, dita por um homem simples, prostrado em uma rua, quando estava sendo sufocado pela pressão de um joelho, com o rosto preso ao asfalto. Por não poder respirar, morreu. O fato ocorreu durante uma pandemia que está a matar milhões em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos da América do Norte, onde o fato ocorreu. É a pandemia do vírus Corona, uma nova versão do Corona que percorreu mundo duas vezes neste século, que foi apelidada de Covid -19, ataca os pulmões, dificultando a respiração daquele que foi tocado por esse invisível companheiro que pode leva à morte. Um policial não é um vírus, mas, se não for bem treinado e educado moralmente, pode deixar parte da população sem respirar, temerosa de sua ação. Algumas pessoas só conseguem entender a possibilidade da morte quando ela chega bem próxima, mas para os mais ricos e os que, em nosso tempo, podem pagar os médicos e os remédios por eles ministrados, a morte é uma visita rara, assim como é a visita da polícia. Aliás, quando a polícia tem que interferir em suas vidas, ela deve seguir tantos protocolos, que é quase impossível que lhes toquem. E se o fizerem, terão outros policiais ao seu encalço. Assim é o mundo no qual vivemos, especialmente em nossa República; nela o presidente interfere em todos os níveis para garantir que a sua prole e a sua riqueza tornem-se intangíveis. Tal situação não ocorre com as populações pobres, do mundo inteiro, elas suspendem a respiração quando um policial se aproxima. A partir daí tudo fica incerto.

No Brasil da Pandemia do Covid -19. Já morreram mais de cinquenta mil pessoas. Pobres e ricas, mas sabemos que os mais pobres mortos são em números bem maiores que o número dos ricos que morreram. Aos pobres falta assistência médica, moram em lugares onde não chega água, não tem escola para todos os meninos, meninas, rapazes, moças. Os médicos não chegam aos ambulatórios que por ventura existam nesses lugares. Afinal não estudaram seis ou sete anos para subir morros ou ir viver em cidades do interior do Brasil que não possuem internet, nem bares ou boates elegantes. Não foi para isso que eles gastaram os anos de sua juventude frequentando universidade pública, paga pelos impostos tirados exatamente do trabalho dessas pessoas que moram nesses lugares distantes da “civilização”. Não, sem esses confortos esses médicos não poderão respirar, como se prova por sua ausência no que costumo chamar de Brasil Profundo, repetindo o que aprendi de Jarbas Maciel, um dos meus mais queridos professores.

Como o Covid -19 atinge os pulmões, este ano não houve a queima das fogueiras em homenagem aos santos Antônio, João e Pedro. As moças não precisam mais de Santo Antônio para encontrar um marido (será que alguém ainda quer?) pois algum aplicativo apontará alguém para o próximo (?) final de semana. Tivemos menos fumaça, não houve fogos para acordar São João do Carneirinho, e este ano não se fizera compadres e comadres de fogueira. Hoje, as viúvas não acenderam fogueira ao seu protetor, São Pedro, hoje mais conhecido como primeiro papa. Sim, São Pedro intercedeu a jesus por sua sogra, uma mulher sem companheiro que lhe protegesse. Com a Previdência Social, esperava-se que as viúvas tivessem mais proteção do estado, dependessem menos de suas orações a São Pedro, mas neste Brasil, viúva garantida, só se for de militar, que não tem filha para casar, pois se casar perde os cuidados que o Estado deveria conceder às viúvas dos trabalhadores mortos em serviço ou, depois do trabalho se encontrarem algum policial brigado com o chefe, com a mulher ou de cota atrasada com a milícia. O jornal O Globo de hoje (28/06) informa que o número de mortos pela polícia cresceu 26% durante a pandemia. Talvez os policiais estejam esperando um comenda encomendada pela família presidencial.

Ao contar 50.000 mortos pelo Covid 19, o presidente do Brasil convidou um sanfoneiro limitado para uma Ave Maria, querendo homenagear os mortos. Foi seu primeiro suspiro de solidariedade. O sanfoneiro era limitado, cantava mal e Nossa Senhora ouviu porque ela é a Mãe da Misericórdia. E precisamos dela como Advogada nossa contra o mal que atinge o Brasil a partir dos palácios e casernas.  

70 anos de Auschwitz e as escolhas da humanidade

terça-feira, janeiro 27th, 2015

 

70 anos do fim do pesadelo de Auschwitz , um pesadelo para os que ali viveram até à sua morte e, também pesadelo para os que sobreviveram.  Deste muitos viveram com a culpa de terem sobrevivido, esse sofrimento adicional por ter visto tão sofrimento e dor e, entretanto terem ouvido dos que morreram o pedido para que não deixasse que viesse a ser esquecido o que se vivia naquele local, símbolo do mais baixo índice de moralidade, de negação dos valores que a humanidade vem criando desde que superou o estágio animalesco de sua trajetória. A trajetória humana tem sido de superação da simples sobrevivência animal, estabelecendo normas de convivência, norma que permitiram a geração de religiões, filosofias ciências, tecnologias,  conversações, artes, modas etc.   Auschwitz foi, em nome da defesa de uma adulteração dos valores civilizatórios, o caminho do retorno à e da barbárie que julgávamos ter desaparecido. Os criadores de Auschwitz diziam quere purificar a sociedade, retirando dela aqueles que eles julgavam ser responsáveis pela miséria humana. Mentalidades doentias quiseram impor sua doença como sinal de sanidade e desumanizaram-se ao negar a humanidade de outros. O fim dos campos de concentração nazistas, lamentavelmente não significou o fim do nazismo, nem o desaparecimento dos campos de concentração e extermínio de parte da humanidade. Os que libertaram os sete mil sobreviventes de Auschwitz mantiveram os Gulags e criaram outros; havia campos de concentração em outras nações e, os atuais campos de refugiados de muitas guerras que atualmente estão em andamento no globo, atestam que aprendemos pouco do que aconteceu na Alemanha dominada pela insânia nazista. Quase vemos replicado aquilo que foi vencido. O medo do outro, a defesa de objetos e valores de grupos que se apresentam como representantes de alguma divindade ou seus arautos continuam a tentar destruir valores, enquanto dizem defender a humanidade. As guerras e as defesas da violência e da morte, física ou social de parte da humanidade indicam que aprendemos pouco com a vitória sobre a o projeto fascista do alemães magoados após a guerra de 14.

Conversando com amigo sobre o destino do Brasil, comentei entrevista que o irmão dominicano Frei Beto concedeu à revista Isto é. Nela, o frade que foi assessor de Lula no programa Fome Zero, hoje se diz um ING – indivíduo não governamental, mas lamenta que a presidente Dilma não tenha seguido o caminho de Evo Morales e que espera o retorno de Lula para governar o Brasil de 2018 a 2016. Eu duvidava da realização desse sonho escritor católico defensor da luta armada. Então meu amigo disse que “Lula não perde nem para Jesus Cristo”. Nós rimos e, então eu disse que Jesus Cristo, na política não ganha para ninguém em eleições. Lembrei a ele que Jesus perdeu no plebiscito proposto por Pôncio Pilatos. O povo preferiu Barrabás, aquele que optara pela violência e pela luta armada contra o Império Romano.

Tem gente que diz seguir Jesus, mas, por via das suas dúvidas, prefere votar em Barrabás. Este parece ser o dilema da civilização ocidental, construída sobre os ensinamentos de Jesus, mas com aderência dos seguidores de Barrabás, como se comprova no comportamento de outros religiosos cristãos: São Bernardo e São Domingos. O primeiro, renovador do espírito beneditino e incentivador das Cruzadas, o segundo, fundador da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) e  organizador do Tribunal do Santo Ofício. Difícil é ser cristão oferecendo a outra face. Cede-se com facilidade à reação instintiva e, esquecemos os valores da convivência civilizacional. Mas história que tem ficado é a da conversação, do debate, mesmo que a violência e a agressão pareçam vencer momentaneamente.

A barbárie sempre teve seus doutos defensores e religiosos que, desde o Egito Antigo, passando pelas civilizações clássicas, tangenciando mongóis, mings, califas, papas, aitolás, sacerdotes astecas e tantos outros bebedores de sangue humano, e, entretanto, ela sempre é confrontada com os amantes da humanidade que, como dizia  T. Chardin, se eleva sobre o mundo.