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Encruzilhadas civilizacionais

sábado, fevereiro 11th, 2023

Encruzilhadas civilizacionais.

Prof. Severino Vicente da Silva

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A vida pulsa de maneira tão inusitada e, ao mesmo tempo, parece repetitiva. Há milhares de anos que a terra se move e se agita. Move-se silenciosamente no espaço, seguindo uma rota que lhe é própria em meio a uma imensidão de outros corpos, que se atraem e se repulsam. Internamente, contudo, ela é pura agitação, movimentos dos quais não temos conhecimento imediato e, vez por outra explode em forma de vulcões terremotos. A terra se move e não nos pede licença. Também, para organizar-se em culturas e civilizações, os seres humanos não pediram licença para sulcar a terra, modificá-la externamente com o objetivo de produzir alimentos, levantar casas, abrir veredas, controlar o movimento das águas e dos ventos. Os primeiros séculos de convivência dos humanos com a terra, da qual eles fazem parte, parecem ter sido mais tranquilos que os dias de hoje. Apenas parece, como nos deixam entrever as tradições que os povos antigos deixaram em algum tipo de suporte documental. Sabemos da fúria de Posseidon, dos dilúvios presenciados por Gilgamesh e Noé, dos monstros que se alimentavam de humanos.

Nos últimos trezentos anos a ação dos humanos sobre a terra tem sido aumentada e, novas modos do que fazer para manterem-se vivos, fizeram os grupos humanos modificar o relacionamento com o que costumavam chamar de Mãe Terra, Pachomama, e outras maneiras carinhosas de reconhecimento ao lugar onde viviam. E lhe prestavam culto. Perdeu-se a ternura e o jeito poético de conviver com a natureza. Gilberto Gil chamava os poetas e os namorados para cantar “talvez as derradeiras noites de luar”.  E, se as religiões mostraram que os homens deviam reconhecer-se na natureza, as tecnologias que foram sendo criadas para garantir a sobrevivência dos humanos, começaram a ferir a natureza, a terra, distanciando-se dos afetos que uniam homem e terra, a ponto de começarem justificar o estranhamento, a separação, rompendo os laços amorosos que as primeiras civilizações haviam se permitido.

Ao distanciar-se da terra e não se ver mais como parte integrante dela, os humanos começaram a aprofundar a separação entre eles mesmos e com a terra; rompendo esses laços estabeleceram entre si relações de exploração, de dominação, cuidando para que a cooperação que sempre existiu, passasse a ser vivida apenas visando os interesses imediatos do seu grupo imediato. Quase nunca se percebe os efeitos dessas opções. A terra emite, vez por outra, reações que tornam explicitas as consequências das relações desrespeitosas mantidas por grupos humanos contra seus outros grupos humanos. A exploração sem limite das possibilidades da terra por um grupo, faz crescer o egoísmo que as religiões e as filosofias tentaram suprimir ou domar. As consequências dos terremotos recentes, no Haiti e na Síria e Turquia, matam tanto quanto os passado, e explicitam as condições em que viviam os milhares de mortos.

Uma imagem que ficou na minha memória foi o contraste do vestuário do presidente/ditador da Turquia com o vestuário dos que  viviam nos edifícios que foram abaixo, empurrados pelo movimento das placas tectônicas em movimento. O terremoto é natural, como foi o que destruiu parte de Lisboa, o que afetou as instalações nucleares do Japão, bem como a explosão que guardou Pompéia.

A formação e a expansão das culturas, processo de transformação da natureza para garantir a sobrevivência dos humanos tem um preço altíssimo pois, a longa infância dos filhotes humanos exigiu um esforço maior para garantir a sobrevivência das crias que chegavam, um aperfeiçoamento na forma de conseguir alimentos e, como nas demais espécies animais, cuidar defender-se daqueles que, não tendo conseguido os alimentos necessários para si e para os seus, procurou o alimento já coletado. Creio que aqui está a principal encruzilhada da vida humana: dividir o que tem ou manter para si deixando o outro à morte. Esta é a tensão da humanidade entre o altruísmo e o egoísmo. A crescente acumulação de riqueza por alguns em sido a resposta dada pela humanidade, como demonstrado está na organização das primeiras civilizações, onde quer que elas surgissem. Um grupo conseguiu ter acesso ao produto do trabalho de todos. Esse processo acelerou-se mais nos últimos três séculos. Aceleração causada pela organização do conhecimento, um trabalho quase sagrado ao qual poucos tinham acesso provocou a organização de bibliotecas em suas diversas formas, selecionando o grande saber que deveria ser mantido, e este veio a ser privilégio de alguns, justificativa do poder, e o conhecimento que restou à maior parte da população, foi o conhecimento básico necessário para a reprodução da vida. A complexidade dos saberes atingida pelo que vem sendo criado pelas sociedade, ampliou a divisão social e restringiu o saber para poucos.  Consolidou-se a sociedade que separa. Decorre daí a interminável a tarefa de convencer os humanos que a terra é de todos. Muitos que travam esse combate prometendo que está organizando um grupo de pessoas para promover o fim das exclusões, logo que são aceitos nesse processo começam a agir de forma semelhante ao que pretendem mudar, passam a vestir o costume daqueles a quem diz querer modificar. Costume é uma palavra que remete a vestuário. Pelo costume você sabe qual é o costume que virá a se manter. Pequenas e médias mudanças ocorrem neste processo, e elas garantem a continuidade da vida. Mas não sem sofrimento. Enquanto refletia sobre as mudanças ocorridas nos século XIV a XVI na Europa, especialmente sobre o processo da expansão europeia e do processo de evangelização, uma jovem percebeu que esses são aspectos do mesmo processo, então  a pergunta é: o que está acontecendo, em nosso tempo, com o povo Yanomami não será o mesmo processo que ocorreu com os Caeté, Tabajara, Aymoré e todos os povos que viviam em Pindorama (Terra das Palmeiras, para os Tupi), para a América pode ser Abya Yala (Terra em florescimento ou Terra viva, para os Kuna, povo que vive no Panamá). O processo de ocupação e destruição da terra que ocorre em Rondônia não tão dessemelhante do que ocorreu nas Gerais dos séculos XVII e XVIII.  E o comportamento dos garimpeiros, com exceção da tecnologia mecânica, não difere muito do modo de fazer utilizado pelos bandeirantes que, dizem os livros guardadores e transmissores do saber, fizeram os limites do Brasil. A destruição da terra vem sempre acompanhada da destruição dos homens.

 E é esse o paradoxo que vivemos nos dias atuais: viver na compreensão que devemos deixar a terra viver para que possamos viver nela. Talvez, se conseguirmos diminuir o grau de exploração dos humanos, diminuiríamos o grau de exploração da terra aumentaríamos o antropoceno. Mas isso significa mudar a civilização. Faremos isso?

Olinda, dia de Nossa Senhora de Lourdes, cuidadora dos enfermos.  

A encruzilhada do Antropoceno

sábado, julho 2nd, 2022

Prof. Severino Vicente da Silva

Acontecimentos estranhos ocorrem a cada momento na face da terra, como se fora dela haja ocorrências que não parecem comuns, pois o incomum sempre é percebido pelo humano e a partir de suas experiências. Talvez, no universo material estudado por Isaac Newton e, depois por Einstein, as ocorrências não se repitam, mas elas, talvez, não se percebam como extraordinárias. O mundo físico é muito ordinário. Nossa parte física é bastante ordinária e, até mesmo se pode prever o que ocorrerá com ela no seu processo em direção da degeneração. Claro que não é destruição, mas ocorrerão transformações na matéria que parece ter acabado. Mas se pensarmos no mundo que não natural, esse criado pelos homens e mulheres ao longo desse período hoje chamado de Antropoceno, podemos intuir que algo poderá mudar. Mas em que direção?

Em que direção caminharam os antigos egípcios para se tornarem uma potência, dominando alguns povos vizinhos? Quais caminhos foram criados pelos caldeus, assírios e tantos outros povos que procuraram entender de onde vieram, e para que existiam. Pelos testemunhos do que restou de suas culturas e sistemas de vida, podemos induzir que eles entendiam que aqui estavam porque alguma divindade os colocou com o intuito de que lhes prestassem homenagem, dominassem os seus vizinhos, sempre definidos como inimigos da humanidade, entendendo-se como humanidade o conjunto de normas e comportamentos que estabeleceram para suas vidas.

 Ao termo de algum tempo esses e outros povos deixaram de existir fisicamente, mas suas experiências ficaram guardadas, de modo inconsciente, por seus sucessores. Sim, seus sucessores fizeram com eles o que eles fizeram com seus vizinhos. Ocorreu o mesmo com povos de todos os continentes. Mas, como estavam muito isolados, não se conheciam e, para as mesmas perguntas encontraram respostas semelhantes, mas não iguais. Sim, também os povos pré colombianos. Mas todas essas culturas têm em comum o fato de serem animais, seguindo as normas da natureza em seu ciclo vital. Uns sucumbem para que outros continuem a existir. O que parece separar os homens dos demais animais é que, em sua organização parece existir uma norma que os levam a jamais estarem satisfeitos com suas realizações. Depois de dominar os animais diferentes de si, resolveram dominar os animais semelhantes a si. Dessa forma criaram as mais diferentes justificativas para explicar suas ações de domínio. Viviam tranquilos por estarem separados e intranquilos por temerem ser atacados pelos inimigos distantes. Sim, inventaram essa palavra justificativa e permissiva. Os homens permitiram a si mesmos a possibilidade de anular o inimigo, aquele que não reconheciam como igual. E Alexandre foi até à Índia em busca do inimigo. No Antropoceno tudo que diferente torna-se inimigo, portanto, próprio para o extermínio.

Essa situação de buscar o inimigo acentuou-se nos últimos séculos, exatamente os séculos de maior aproximação, pois nesses séculos a natureza foi “totalmente” dominada: na terra, onde milhares de animais já foram extintos para que o homem tivesse onde morar e espaço ´para arrancar do seio da terra as riquezas ali guardadas; nos mares, onde seus navios levam barulhos estranhos que impedem a comunicação entre os animais marinhos, e que também caçam para sua alimentação, e jogam o óleo gerado da morte de seres que viveram em tempo anterior ao Antropoceno, causando a morte de milhares de animais, mas isso também está concetado ao desejo de comunicar-se com o outro; no ar onde a fumaça gerada pela queima de material fóssil suja a atmosfera e a perfura com favorecendo a antecipação da morte da terra, a casa comum dos homens e mulheres, conforme a definição dada por Francisco, Papa dos cristãos católicos.

O século XXI tem sido a explicitação de que a vida se consome na produção da morte, não importa que as justificativas das ações humanas sejam religiosas ou não. Nesta fase do Antropoceno, as justificativas religiosas são dadas pelos que não frequentaram as escolas, nestas se ensina que os deuses e as religiões são desnecessários ou desnecessárias.

Há muitas guerras em andamento, neste instante. A mais famosa é entre a Federação Russa e a Ucrânia. Em verdade, está se travar uma guerra entre a concepção de humanidade que o Ocidente (União Europeia, Estados Unidos da América do Norte) e a concepção que o Oriente (Federação Russa, China). É a sempre presente ideia de que meu inimigo deve morrer. Estamos, no século XXI DC, com conceitos extremamente semelhante ao modo de Hamurabi que se proclamava Senhor dos Quatro Cantos da Terra.

Quando refletimos e estudamos essa situação com uma distância razoável, e modo que os misseis não nos alcancem, o fazemos racional e tranquilamente, mas se esse modo de pensar começa a ganhar espaço na sociedade em que vivemos, como está agora acontecendo no Brasil, o medo nos assalta. Nem percebemos que estão a destruir o que de melhor foi criado no Antropoceno, o esforço de, no meio da exploração constante do homem pelo homem, recriar a humanidade com os valores de respeito ao outro, de aceitação do outro, da compaixão tornada forma legal de comportamento. Desenvolvemos a compaixão pelas crianças nascidas com deficiências, não mais aceitamos como norma social abandoná-las ou vende-las; definimos que a tortura, ou seja, o uso de violência contra uma pessoa impossibilitada de defesa, como crime; estamos a criar um novo patamar nas relações entre os sexos; buscamos inibir a violência por motivações religiosas, regulamos as maneiras de estabelecer contrato de trabalho com o objetivo de diminuir a exploração do homem pelo homem; as nações celebram contratos de convivência e cooperação, e tantas outras conquistas e vitórias sobre os comportamentos que hoje consideramos barbárie. Mas falta muito para que superemos esse amanhecer da humanidade. E os estudiosos do Antropoceno nos apontam que esses comportamentos continuam a ser ideais a serem conquistados, enquanto isso, os inimigos da civilização continuam a nos amedrontar.

Até quando o Antropoceno será o causador do fracasso da vida?

Sem olhar para cima e para os lados

quinta-feira, dezembro 30th, 2021

Sem olhar para cima nem para os lados

Severino Vicente da Silva

Somos tentados, sempre, a escrever algo no período final do ano, em sua última semana. Quase sempre vem a ideia muito comum de fazer uma retrospectiva, um olhar para o que foi feito. Os católicos diriam que é como um exame de consciência, daqueles que se faz, ou se fazia, minutos antes da confissão semanal. Outros faziam, ou fazem ainda, a cada noite, antes do agradecimento pelo dia e, então, adormecer. Mas os exames de consciência e os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, um pouco na direção do que fazia o Mestre Eckhart, uma reflexão pessoal na relação com a divindade na busca do aperfeiçoamento espiritual, não são muito populares atualmente. E este é sempre um caminho a ser vencido sozinho e, simultaneamente, com todos que estão a nosso lado, desde aquele com quem travo contato diário até aqueloutro que jamais vi e verei. Pensamentos como esses permeiam o universo humano nesses dias rituais da passagem de um tempo para outro, de um tempo já vivido, e aparentemente conhecido, para outro que começa a ser feito por desejos a serem tornados fatos e dados na vida nova que se promete.

Então vi um filme que está sendo bastante comentado, o Não Olhe para Cima. Segundo alguns amigos, é um filme que segue o comando hollywoodiano na direção de um Oscar, que talvez não virá; para outros apresenta a perplexidade do homem moderno em não perceber o que realmente anda fazendo enquanto se diverte sempre, seja na apresentação de um telejornal que deveria ser informativo, até ao exercício da presidência, um brinquedo que alguém recebe para encobrir as verdadeiras ações que comandam a bolha coletiva da humanidade, formada por uma imensidão de bolhas individuais que, em alguns momentos, tangenciam-se. Pretende ser um filme sobre dois pontos cruciais no momento que vivemos: o negacionismo, essa prática de negar o óbvio que pode impedir o divertimento, e o final da terra, e o Final do planeta.

Um dos aspectos não negligenciados pelos responsáveis na organização do filme, é a pretensão do Destino Manifesto dos USA; o enredo mostra que a manifestação deste destino se dá sempre através de guerras e da empáfia que acompanha, vem acompanhando, aquela nação desde que superou a fase de ser colônia da Inglaterra. O filme termina ao explicitar o fracasso dos USA em cumprir o seu destino de salvar a humanidade. Além de gritar Não Olhe para cima, os que pretendem salvar o mundo não conseguem olhar para os lados e, quando olham, só conseguem enxergar os inimigos de sempre: a China, a Rússia, o Japão…. Motivo de alegria quando se sabe que eles fracassaram em seu intento de salvar a terra. Mas os risos marotos, os comentários não ditos, parecem indicar que teria havido sabotagem no evento que destruiu as bases de lançamento dos foguetes salvadores, os foguetes daqueles povos que fazem parte do “resto da humanidade”, aqueles que não aceitam a imposição de que não foram destinados a essa tarefa sotereológica.

Pedagógico, o filme apresenta os que realmente comandam os povos e estados, esses investidores que não aceitam serem chamados de empresários, que se apresentam como pessoas altruístas e sempre prontas a sacrificar a vida dos outros para preservar o melhor da humanidade, eles mesmos. Eles sempre pensam em viagens a outros mundos, outras possíveis “terras” e povoá-las com as normas que foram criadas ao longo dos séculos, mas repaginadas em períodos mais recentes, os modernos. Nestes, os científicos, criaram novas explicações, aplicaram as matemáticas na organização de uma nova maneira de viver, atualizaram os comportamentos, explicaram o que foi realizado enquanto abriram caminhos novos para a humanidade. O filme, que trata das angústias de dois cientistas que descobriram a chegada do fim do planeta, os apresenta como essas crianças curiosas, mas incapazes de performarem decentemente em um programa matinal de televisão, e ninguém os leva a sério. Apresenta-se a comunidade científica como assessores, sem poderes, apenas levados a sério se confirmam a segurança tomada pelos políticos, financiados pelos empresários que se apresentam como filantropos.

O viés do central do filme parece ser o de querer chamar atenção ao fato de que a sociedade, infantilizada pelo consumo permanente da alegria feérica, não considera que o fim do planeta vem de cima. Então os diretores, parece, estão se dando por vencidos, pois poucos levaram a sério o que disseram e mostraram anteriormente no documentário Uma Verdade Inconveniente, aquele filme que incitava a olhar para os lados, e entender que o modo de vida assumido vorazmente pela sociedade de consumo estava pondo em risco a vida do planeta, portanto a vida dos humanos. Mas a sociedade, convidada a consumir-se consumindo, produzindo o lixo que intoxica as artérias do planeta, apenas achou o documentário interessante. Ao perceber o fracasso do seu apelo para que olhassem para os lados e ao redor, e verificassem o fim das florestas, a impermeabilização do solo, a intoxicação da terra que aumenta a produção de alimentos e o aumento da fome, alguns cientistas aceitam ser apresentados como bobos da corte, mas não conseguem duas coisas: arrancar o riso e convencer a audiência.

Então, é só esperar pelo fim na última ceia, sem a promessa da ressureição.