Encruzilhadas civilizacionais.
Prof. Severino Vicente da Silva
ORCID 000000189111409
A vida pulsa de maneira tão inusitada e, ao mesmo tempo, parece repetitiva. Há milhares de anos que a terra se move e se agita. Move-se silenciosamente no espaço, seguindo uma rota que lhe é própria em meio a uma imensidão de outros corpos, que se atraem e se repulsam. Internamente, contudo, ela é pura agitação, movimentos dos quais não temos conhecimento imediato e, vez por outra explode em forma de vulcões terremotos. A terra se move e não nos pede licença. Também, para organizar-se em culturas e civilizações, os seres humanos não pediram licença para sulcar a terra, modificá-la externamente com o objetivo de produzir alimentos, levantar casas, abrir veredas, controlar o movimento das águas e dos ventos. Os primeiros séculos de convivência dos humanos com a terra, da qual eles fazem parte, parecem ter sido mais tranquilos que os dias de hoje. Apenas parece, como nos deixam entrever as tradições que os povos antigos deixaram em algum tipo de suporte documental. Sabemos da fúria de Posseidon, dos dilúvios presenciados por Gilgamesh e Noé, dos monstros que se alimentavam de humanos.
Nos últimos trezentos anos a ação dos humanos sobre a terra tem sido aumentada e, novas modos do que fazer para manterem-se vivos, fizeram os grupos humanos modificar o relacionamento com o que costumavam chamar de Mãe Terra, Pachomama, e outras maneiras carinhosas de reconhecimento ao lugar onde viviam. E lhe prestavam culto. Perdeu-se a ternura e o jeito poético de conviver com a natureza. Gilberto Gil chamava os poetas e os namorados para cantar “talvez as derradeiras noites de luar”. E, se as religiões mostraram que os homens deviam reconhecer-se na natureza, as tecnologias que foram sendo criadas para garantir a sobrevivência dos humanos, começaram a ferir a natureza, a terra, distanciando-se dos afetos que uniam homem e terra, a ponto de começarem justificar o estranhamento, a separação, rompendo os laços amorosos que as primeiras civilizações haviam se permitido.
Ao distanciar-se da terra e não se ver mais como parte integrante dela, os humanos começaram a aprofundar a separação entre eles mesmos e com a terra; rompendo esses laços estabeleceram entre si relações de exploração, de dominação, cuidando para que a cooperação que sempre existiu, passasse a ser vivida apenas visando os interesses imediatos do seu grupo imediato. Quase nunca se percebe os efeitos dessas opções. A terra emite, vez por outra, reações que tornam explicitas as consequências das relações desrespeitosas mantidas por grupos humanos contra seus outros grupos humanos. A exploração sem limite das possibilidades da terra por um grupo, faz crescer o egoísmo que as religiões e as filosofias tentaram suprimir ou domar. As consequências dos terremotos recentes, no Haiti e na Síria e Turquia, matam tanto quanto os passado, e explicitam as condições em que viviam os milhares de mortos.
Uma imagem que ficou na minha memória foi o contraste do vestuário do presidente/ditador da Turquia com o vestuário dos que viviam nos edifícios que foram abaixo, empurrados pelo movimento das placas tectônicas em movimento. O terremoto é natural, como foi o que destruiu parte de Lisboa, o que afetou as instalações nucleares do Japão, bem como a explosão que guardou Pompéia.
A formação e a expansão das culturas, processo de transformação da natureza para garantir a sobrevivência dos humanos tem um preço altíssimo pois, a longa infância dos filhotes humanos exigiu um esforço maior para garantir a sobrevivência das crias que chegavam, um aperfeiçoamento na forma de conseguir alimentos e, como nas demais espécies animais, cuidar defender-se daqueles que, não tendo conseguido os alimentos necessários para si e para os seus, procurou o alimento já coletado. Creio que aqui está a principal encruzilhada da vida humana: dividir o que tem ou manter para si deixando o outro à morte. Esta é a tensão da humanidade entre o altruísmo e o egoísmo. A crescente acumulação de riqueza por alguns em sido a resposta dada pela humanidade, como demonstrado está na organização das primeiras civilizações, onde quer que elas surgissem. Um grupo conseguiu ter acesso ao produto do trabalho de todos. Esse processo acelerou-se mais nos últimos três séculos. Aceleração causada pela organização do conhecimento, um trabalho quase sagrado ao qual poucos tinham acesso provocou a organização de bibliotecas em suas diversas formas, selecionando o grande saber que deveria ser mantido, e este veio a ser privilégio de alguns, justificativa do poder, e o conhecimento que restou à maior parte da população, foi o conhecimento básico necessário para a reprodução da vida. A complexidade dos saberes atingida pelo que vem sendo criado pelas sociedade, ampliou a divisão social e restringiu o saber para poucos. Consolidou-se a sociedade que separa. Decorre daí a interminável a tarefa de convencer os humanos que a terra é de todos. Muitos que travam esse combate prometendo que está organizando um grupo de pessoas para promover o fim das exclusões, logo que são aceitos nesse processo começam a agir de forma semelhante ao que pretendem mudar, passam a vestir o costume daqueles a quem diz querer modificar. Costume é uma palavra que remete a vestuário. Pelo costume você sabe qual é o costume que virá a se manter. Pequenas e médias mudanças ocorrem neste processo, e elas garantem a continuidade da vida. Mas não sem sofrimento. Enquanto refletia sobre as mudanças ocorridas nos século XIV a XVI na Europa, especialmente sobre o processo da expansão europeia e do processo de evangelização, uma jovem percebeu que esses são aspectos do mesmo processo, então a pergunta é: o que está acontecendo, em nosso tempo, com o povo Yanomami não será o mesmo processo que ocorreu com os Caeté, Tabajara, Aymoré e todos os povos que viviam em Pindorama (Terra das Palmeiras, para os Tupi), para a América pode ser Abya Yala (Terra em florescimento ou Terra viva, para os Kuna, povo que vive no Panamá). O processo de ocupação e destruição da terra que ocorre em Rondônia não tão dessemelhante do que ocorreu nas Gerais dos séculos XVII e XVIII. E o comportamento dos garimpeiros, com exceção da tecnologia mecânica, não difere muito do modo de fazer utilizado pelos bandeirantes que, dizem os livros guardadores e transmissores do saber, fizeram os limites do Brasil. A destruição da terra vem sempre acompanhada da destruição dos homens.
E é esse o paradoxo que vivemos nos dias atuais: viver na compreensão que devemos deixar a terra viver para que possamos viver nela. Talvez, se conseguirmos diminuir o grau de exploração dos humanos, diminuiríamos o grau de exploração da terra aumentaríamos o antropoceno. Mas isso significa mudar a civilização. Faremos isso?
Olinda, dia de Nossa Senhora de Lourdes, cuidadora dos enfermos.
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