O Escravo Francisco: qual a tradição: a do Medo ou a da Liberdade?

O ESCRAVO FRANCISCO: QUAL TRADIÇÃO: A DO MEDO OU A DA LIBERDADE

Prof. Severino Vicente da Silva

Então saímos de casa e olhamos o mundo que carregamos em nós. Quase sempre só vemos o que já conhecemos. Quando encontramos algo que nos é desconhecido, temos que parar e comparar com o que já conhecemos, e.  nesse exercício, podemos crescer em conhecimento, ou podemos não sair de onde estamos. Sempre temos a possibilidade de negar o que de novo nos vem.  Estranha essa situação. Nos últimos dias percebi que, ao sair para usufruir ou conhecer uma cidade histórica, dessas que são nomeadas Patrimônio Cultural, tenho firmado, após conversas aleatórias com seus moradores, percebi que eles não sabem do que estamos falando ou perguntamos. Estaria conversando com estrangeiros em sua própria terra?

Às vezes seria melhor que assim fosse, pois que podem estar cultivando algo que não deveria ser guardado na memória, exceto para que não viessem a ser repetidos. Bem, na história, aprendemos que nada se repete, não da mesma maneira.

Se somos o que fomos, o que somos é resultado do foi vivido no passado, ou seja, o passado nos acompanha de maneira quase definitiva. O Brasil foi sendo gestado com um pequeno número de pessoas a impor suas vontades, desejos e projetos sobre um número enorme de outras pessoas. O Brasil cresceu com a escravidão, terminada oficialmente em 1888. Foram cerca de trezentos e cinquenta aos de abuso, de destruição de pessoas enquanto se construía o Brasil. Relações de ódio, medo, simpatia, ojeriza, carinho, perdas, frustrações, guerras, mentiras, tudo isso e muito mais fez parte da formação do Brasil: devemos reconhecer que foi assim a nossa formação, como foi a dos povos e nações com as quais convivemos no cenário mundial. E tudo isso deve ser parte da memória explícita, não apenas da memória coletiva e reprimida que carregamos. É necessário saber o que fomos e como fomos para entender o que somos.

Falamos da escravidão que tudo criou no Brasil. Joaquim Nabuco ensinou que não há coisa neste país que não tenha o trabalho da mão cativa. O cativo indígena, de quem tudo lhe foi tirado, e o cativo africano a quem nada lhe foi dado. Houve, e há, outra parte que tudo tomou, tudo teve e tudo negou. No tempo presente: tudo tem, tudo tem, tudo nega. Tomou terras do indígena para si, e também lhe tomou a liberdade, os corpos saudáveis de suas mulheres, e lhe tomou e sua alma; tomou para si o trabalho do africano escravizado, tomou seus corpos, seus sonhos, sua alma. Com isso tudo fez surgir um povo moreno, mestiço, a quem tudo é negado, de quem lhe é tomado o resultado de seus trabalhos. Assim foi sendo construído um país que só “pode” ver o mundo com os olhos daqueles que sempre o dominara, que tudo tomou para si.

 Joaquim Nabuco, dizem, era um flâneur, um vadio errante, em suas passagens pela Europa. Olhava ao seu redor, gozava os benefícios que a sociedade inglesa lhe dava, e nada que fizera para o que estava usufruindo. Seria o Pedro, segundo imperador do Brasil outro Flâneur? Sem poder ir a Europa, tento ser flâneur no Brasil. Será isso possível? Joaquim Nabuco em suas andanças inglesas não conseguia ver que estava no interior das minas de carvão. O Imperador se encantava com a França e seus escritores, mas não parece haver a presença da comuna de Paris em suas memórias. Folheando livro de autor alagoano, vejo a hipótese que, influenciado por Victor Hugo, Pedro II começou a comutar a pena de morte definida para os escravos que matassem ou ferissem gravemente seus donos. Era uma lei de 1835, que jamais foi abolida. O senso político do Imperador esteve sempre em luta com a sua convicção na defesa da vida, contra a pena de morte, segundo memorialistas e historiadores. Em relação ao Brasil que se formava com o trabalho escravo, o Imperador se portava como um flâneur. Joaquim Nabuco parece ter abdicado da irresponsabilidade do a Andarilho e se tornou abolicionista. Aliás, ainda estudante defendeu um escravo que matara seu dono, evitando a forca, determinada pela lei de 1835. Como os que estudam história sabem, o Período Regencial (1831-1840) foi um tempo de muitas rebeliões, e a lei que estamos a nos referir foi criada como resposta do Parlamento, em sessão secreta, às rebeliões, especialmente as que envolviam os escravos em luta pela liberdade.

Artur Ramos é um dos brasileiros que dedicou parte de sua vida intelectual para compreender do que é feito o Brasil, atentando para a participação do negro na formação do Brasil. Artur Ramos nasceu na cidade de Pilar, Alagoas. A cidade cresceu com o cultivo da cana e da pesca do Bagre. Mas a cidade agora, como muitas cidades históricas, quer ser local de atração turística. Está a se formar um parque para turismo religioso e, no desejo de alguns, pode vir a ser um local para um teatro aberto, em torno de um fato histórico, pouco registrado nos livros didáticos, na memória das gerações. O Acontecimento envolve Pedro II, o imperador que dizia querer ser professor, mas que não parece ter tido interesse em formar um rede de escolas. Ainda bem, pois os escravos, maior parte da população, não teriam tempo para ir aprender sob a orientação de professores. Seria um desastre para os donos dos escravos. Alguns historiadores simpáticos ao imperador, e à sua cidade protegida por Nossa Senhora do Pilar, informam que um acontecimento na cidade marca o fim da pena de morte no Brasil, pois foi em Pilar que ocorreu último enforcamento de um escravo, a quem o imperador negou clemência. Estamos falando do “escravo Francisco”, levado à forca no dia 28 de abril de 1876. Ele matara seus donos, teve um processo que durou dois anos, mas o processo foi destruído. O equilíbrio político do Imperador evitou a comutação da pena de morte em prisão perpétua, como pedira o Escravo Francisco, pois entendeu que os proprietários locais poderiam revoltar-se contra o Império.

O certo é que o Escravo Francisco, após orar na Igreja do Rosário, a pedido seu, seguiu a pé ao local de sua execução, no Sítio Bonga, acompanhado por uma multidão, mais de mil pessoas em uma cidade que então possuía treze mil habitante. Veio gente de muitos lugares para ver o enforcamento do Escravo Francisco. Uma tradição historiográfica diz que Francisco, após se despedir jogou-se antes que o carrasco agisse. Não permitiu que definissem o momento de sua morte, escolheu ele o momento de sua liberdade. 

Anualmente, a cidade de Pilar refaz esta cerimônia, faz o teatro do enforcamento, a cada 28 de abril seguindo o roteiro que o Jornal de Alagoas fez na edição do domingo 30 de abril de 1878. Os que pretendem tornar turístico este evento, esperam que a cada ano venham mais pessoas para assistir, acompanhar o mesmo trajeto que Francisco fez até o local do seu enforcamento. Soube de pessoas que choravam, enquanto outras diziam que tinha mesmo que ser enforcado para servir de exemplo. Caso prospere essa ação, qual memória ficará: a do escravo que reagiu ao tratamento de coisificação a que era submetido, ou a necessidade de que o exemplo continue a ser dado, e os dominados sejam ensinados que não devem reagir à subordinação?  

   Deodoro da Fonseca, Alagoas, 14 de novembro de 2022

Nota:

  1. Informações foram encontradas em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/jornal-de-alagoas-narrou-em-detalhes-ultima-pena-de-morte-executada-no-brasil
  2. SANT’ANA, Moacir Medeiros de. Pilarenses ilustres. Maceió, 2010.

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