Severino Vicente da Silva
Novembro é quase fim de ano e pode ser o início de um novo tempo. Nos últimos anos temos “sofrido prá cachorro”, e deixamos que a parte mais malvada de nossa formação treinasse a fazer o mal, a cultivar o medo, a nos prender em nós mesmos, silenciando nossa possibilidade de liberdade diante dos gritos alucinantes e barulhos de motocicletas. Anunciavam a morte, celebravam o fim das possibilidades de alegria, de sentimento da festa que viria. Ao longo deste ano vimos crescer a maldade, o lado obscuro da alma brasileira. Antigos hábitos, que por parcimônia eram praticados na surdina, começaram a explodir em nossa frente. As placas “elevador privativo”, “elevador de serviço”, por força da legislação começaram a serem proibidas nos edifícios e condomínios, embora o hábito sempre levou os arquitetos brasileiros a sempre desenharem um elevador extra, menor, onde não se punha a placa, mas se praticava o racismo racial e social. Afinal, os arquitetos sempre subiram pelo “social”.
Setembro e outubro foram transformados em meses dedicados à mentira, ao engodo, à intriga, à malícia, tudo indicava que venceria a milícia que se armou com armas de fogo sob a complacência de quem devia proteger os cidadãos brasileiros, leis foram modificadas de modo a permitir a destruição de árvores, dos animais e homens e mulheres da floresta. E a sociedade silenciosa, com poucas vozes apontando que caminhávamos ao desastre, e muitos nem perceberam que a fome estava voltando, reduzindo as potências do povo, pois que discutiam o fim do contrato do Faustão, e não se levava em conta o crescimento numérico de vereadores acusados de pedofilia, assassinato de crianças, enquanto víamos a Câmara Federal servir de coito a assassina e a perseguidos pela justiça. Nem houve comoção quando o “presidente” concedeu perdão a quem descaradamente afrontava a Constituição. “tudo dentro das quatro linhas” mais elásticas que já foram armadas desde o tempo de Nabucodonosor.
O final de outubro foi o desencanto para essa parte da sociedade que já se preparava para um tempo sem negros e mulatos nas universidades, a retorno do “elevador de serviço” e a garantia de que os aeroportos seriam apenas seus, sem pobres à vista. A maior parte dos eleitores que foram votar preferiram o brasil multicolorido, multicultural, multireligioso, em busca de criar um país sem fome, com mais escolas e menos pistolas. E então o Brasil pode ver o que se gestava em suas entranhas, das bocas que clamavam o nome de Deus em vão começaram a sair palavrões como em tsunami; “homens de bem” e defensores da família começaram a invadir ônibus escolares para bater em crianças; pessoas que bebiam e saiam às ruas para matar quem não votou como ele e comemorava a vitória; professoras com PhD cortaram de suas aulas alunos que não votaram como ela; diretora de clube de futebol lamentava os votos do nordestinos que não permitiram a continuidade da miséria que estava sendo gestada. E neste ano vimos uma parte do Brasil que nos recusávamos a ver, esta coisa tribal, não civilizada com verniz de civilização, começamos a ver uma parte do Brasil insensível ao sofrimento do outro, um Brasil formado por gente incapaz de tolerar diferenças, compreender que é necessário sair do universo que gosta a morte. Foi um triste aprendizado, mas necessário para que não continuemos a nos enganar.
Agora sabemos que não somos uma nação feliz como nos fizeram crer; agora sabemos que avançamos pouco desde que o Conde Afonso Celso escreveu “porque me ufano do meu país”, no início do século XX. Então sua glória eram as florestas que estão destruindo, como destruíram o rio Doce, e esburacaram Minas Gerais ao longo do século. O orgulho de Afonso Celso é “apenas uma fotografia na parede”. E todo esse conhecimento de nós mesmos que alcançamos neste ano deve servir para que nos dediquemos mais aos reais valores humanos, que não iremos esmorecer na tarefa de nos tornarmos humanos e não apenas acumuladores de moedas.
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