Em torno do aniversário de Olinda e Recife

Em torno do aniversário de Olinda e Recife

Prof. Severino Vicente da Silva

Então é mais uma aniversário de duas cidades vizinhas, Olinda e Recife. Algumas pessoas dizem que são irmãs e outras falam da relação materno-filial. Ambas recebem uma iluminação especial do sol, uma concentração de luz que, segundo dizem, é a alegria dos fotógrafos. Que seja. Olinda, disse um poeta, é um lugar de desejo, nem mesmo lá se mora, lá, diz ele, é onde se vê. E o que se vê desde as colinas que formam a cidade primeira, é o Recife. Um olindense maldoso, daqueles que carregam o pesar de Olinda não ser mais a capital, dirá que se vê “o aterro”, as terras que foram criadas e tomadas do mar, dos mangues, do rio.

Essas duas cidades são possuídas por rios, sumidos ao longo do tempo em que os homens e mulheres criaram as cidades. Alguns rios sumiram e, vez por outra aparecem e, como outras cidades, ocupam as ruas que os sufocaram. Assim foi com o rio Bultrins, o rio Tapado, o rio Fragoso, o rio Doce, o rio Beberibe, que vem desde Camaragibe, como resultado do abraço dos rios Paca e Araçá. Todos eles quase reduzidos a canais, quase sempre infectados com os dejetos humanos. Esses em Olinda, mas destino semelhante sofreram o rio Tijipió, o rio do Brejo, o Passarinho, o rio Parnamirim, e o famoso Capibaribe, que quase ressurge ao abraçar-se com o Beberibe, antes de lançar-se ao Oceano Atlântico.

Como tudo que é vivo, essas cidades nasceram com sangue e no sangue. A Marim dos Caetés tem seu batismo na guerra com os indígenas que carregavam esse nome. os expulsaram, perseguindo por todo o litoral, e os sobreviventes foram para o “sertão”, buscar espaços de vida. Tomado o espaço, vieram os engenhos, levantados às margens dos rios que forneciam energia e recebiam os detritos. Olinda cresceu, chamava atenção por sua riqueza, concentrada no morro onde Duarte Coelho fez moradia, ergueu uma igreja dedicada ao Salvador do Mundo, hoje catedral do segundo bispado do Brasil, desde final do século XVII. Pouco antes, a riqueza olindense chamou atenção dos comerciantes das Sete Províncias, os chamados Países Baixos, em guerra com a Espanha, que então era possuidora das terras de Portugal. Os batavos, flamengos, neerlandeses, holandeses, como queiram chama-los, incendiaram a orgulhosa cidade, pois decidiram que o Recife, que servia como porto aos produtores de açúcar moradores de Olinda, oferecia melhores possibilidades para os projetos dos comerciantes da Companhia das Índias Ocidentais. Assim, a vila de pescadores começava a sua projeção para além dos arrecifes. Um herdeiro de engenhos e usinas, entusiasmado com a beleza que viu, um dia chegou a dizer que o mundo começa no Recife. Sendo verdade, Olinda foi o vestíbulo.

Muito antes do pintor pernambucano, um alemão resolveu fazer do Recife, especialmente da ilha que fica entre os braços do rio, uma cidade renascentista. Mas, uma semana anos não foi suficiente para que o nobre alemão realizasse o seu sonho, testemunhado pelas pinturas e livros que retrataram o mundo visto por eles. Naqueles anos, porém, o Recife engalanou-se, fez-se pontes para ligar as ilhas e festas, inclusive com bois voando; como também voaram as ordens religiosas que se mudaram para a cidade de “seu Maurício”. Só os de São Bento ficaram no morro que compraram, perto do Varadouro. Um bardo mineiro, séculos depois versejou que os artistas devem estar onde o povo está. Franciscanos e carmelitas sabiam disso.

Olinda viu-se despojada, inclusive os tijolos que antes sustentavam paredes de casas ricas, e muitos serviram para a construção do Recife, cidade com vocação mercantil, local de vivenda das muitas religiões praticadas com relativa liberdade, como sentiram os jesuítas que foram expulsos, e os franciscanos comensais do alemão lembrado como holandês, amigo dos judeus e contratado pelos líderes da Igreja Reformada da Holanda.

Entretanto, as ondas da política levaram o Brasil de volta para Portugal Restaurado e, os senhores de engenho fizeram a Guerra da Restauração não desejada, e retomaram para o domínio dos lusitanos. Olinda procurou de volta o esplendor, inclusive construindo um palácio para o governador, perto do Mosteiro de São Bento, que ampliara suas propriedades na então abandonada Olinda. Contudo o Recife seguiu o curso irreversível e, os novos governadores ampliam os espaços da cidade.

No início do terceiro século veio a inevitável separação, acompanhada com fuga de governadores, prisão de bispos, discursos inflamados de autonomia republicana, mas, enfim o Recife passou a ter pelourinho para espancar escravos, e, também, a sua Câmara do Senado.

Com tempo a passar, Olinda, dizem, tornou-se um lugar “de ventos e conventos”. Mas teve um Seminário que alimentou ideias de Revolução e Liberdade, junto com padres que atuavam no Recife; depois passou a ter uma Escola de Leis. Mas o poder se esvai. Logo se mudaram o governo da Província, a sede do bispado e a Escola de Direito para o Recife. No início do quarto século as irmãs se completam: os ricos do Recife passam feriados natalinos na antiga capital, inclusive com estrada terrestre, com trens que fazem percurso pela Encruzilhada e Beberibe. O Banho de mar atrai a muitos que frequentam as praias do Carmo, Milagre, Farol.

As duas cidades festejam juntas o aniversário porque o Recife não sabe como começou, embora saiba seu lugar. Então, um recifense nascido na Paraíba, há muitos deste tipo pois o Recife sempre abraça quem o escolhe, definiu, após muitos estudos que concluíram por nenhuma data, que o 12 de março é a data de nascimento do Recife. Daí a festa de hoje, com missa celebrada pelo reitor do Seminário de Olinda, na Catedral de São Salvador do mundo, com presença do prefeito, ex-prefeita, muitos seminaristas, personalidades homenageadas, mas com pouca afluência da população. Afinal são poucas as famílias que moram no burgo fundado por Duarte Coelho que agora é, basicamente, apenas um ponto turístico, embora nas encostas do morro haja algumas moradias. Mas esta parte mais antiga, mais ‘histórica’ é cada vez menos povoada, e é para onde os governantes da cidade atraem os turistas.

Parece que naquilo que deveria ser a homilia, ouvi o reitor informar ao prefeito que serão celebradas missas em alemão. Dá a impressão de que há mais turistas alemães que católicos de fala portuguesa no Alto da Sé e frequentadores da Catedral. Mas isso é uma história que parece ter agradado ao prefeito, embora ele não saiba falar fluentemente o alemão.

Esse vazio populacional no local onde começou Olinda parece ocorrer também no Recife, aquela parte que os recifenses e turistas costumam chamar de Recife Antigo, onde se morava e eram realizados grandes comércios no tempo dos holandeses e, ainda recentemente, nos anos setenta do século passado. Mas o porto não foi modernizado a tempo, os armazéns foram perdendo suas funções, a precária chegada de marinheiros e a substituição dos estivadores por esteiras rolantes, também afastaram as prostitutas que tantas agonias traziam às esposas da classe média e de alguns ricaços que atravessavam as pontes após as 18 horas.

Como em Olinda, os prefeitos do Recife gastam parte do seu tempo e dos impostos em ‘revitalizar o Recife Antigo’ e, terminaram por matar o Recife criado ou sonhado pelo príncipe de Nassau, a ilha de Antônio Vaz ou Santo Antônio, mesmo a nova versão inaugurada nos anos quarenta e cinquenta dos novecentos. O que está a crescer são as regiões periféricas das duas cidades, seja nas construções mais populares e numerosas, os barracos nos morros, seja na ‘revitalização do rio Capibaribe, ou melhor, das suas margens, onde aparece um espigão a cada mês. Aos poucos voltou a ser interessante morar na margem do rio, embora há quem diga que já não serve para pesca, navegação. Como Olinda, o rio Capibaribe é “para os olhos”.

As pontes do Recife, como as suas praças estão lá. Os recifenses que moravam na Conde da Boa Vista foram para outros lugares, os colégios cederam seus espaços para centros de compra. Cada centro de compra é uma cidade, ou um pedaço da cidade que foi engolido. Os mascates do Recife vendem seus artigos em frente a lojas fechadas e os moradores dos sobrados não existem mais. Só os dos mocambos.

Olinda tem praias, mas não tem mais coqueiros. Uns foram derrubados pelo avanço do mar, outros pela exploração imobiliária que tomaram seus lugares, assim como os coqueiros havia desarrumado a vida dos cajueiros. Por suas praias estarem encolhidas entre o mar e concreto, são poucos os banhistas, a maior parte deles vindos da Olinda que, pode ter até um padre alemão, mas ele faz questão de falar e rezar em português. Sim, tem essa Olinda que começa pelas bandas do Guadalupe e depois de onde foram construídos os primeiros engenhos. Esse é outro aspecto que une as duas cidades, eles possuem uma parte que não é ‘histórica’, ou seja, não apresenta as casas dos senhores de engenho, pois esses, dizem os livros que eles escreveram, fizeram a história. Sim, assim com o verbo no passado.

 Mas se o presente é construído a partir do que foi passado, o passado só existe se o presente o desejar. Será que o presente de hoje deseja e quer manter vivo o passado ou quer apenas a sua preservação? Preservar algo que não faz parte da vida é simplesmente a exposição gratuita dos objetos. Talvez por isso, essas cidades tenham tantos problemas e dificuldades em manter seus sítios históricos, por negarem a historicidade vivida pelo povo que não fala alemão.

Agora, uma pergunta desse mestiço pardo, nascido em Carpina, criado no Recife e habitante de Olinda: Quando será que que o reitor do Seminário de Nossa Senhora das Graças de Olinda nos informará quando teremos uma missa em nagô na Catedral?

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