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COMO CHEGAMOS AO BICENTENÁRIO

sábado, janeiro 28th, 2023

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COMO CHEGAMOS AO BICENTENÁRIO, Um percurso pessoal na compreensão da Independência do Brasil[1]

Professor Severino Vicente da Silva[2]

ORCID  000000189111409

  1. INTRODUÇÃO COM LEMBRANÇAS

                    Em pouco dias o Brasil irá comemorar o aniversário de duzentos anos de uma ação que ocorreu às margens do Riacho Ipiranga, localizado na cidade de São Paulo.  Ali ocorreu o e encontro de Paulo Emílio Bregaro e o Major Antônio ramos Cordeiro com a comitiva do príncipe dom Pedro que estava retornando de Santos. Tendo recebido as cartas que lhes foram enviadas por sua esposa e regente Dona Leopoldina e o ministro José Bonifácio de Andrade e Silva, Dom Pedro. Narra Rocha Pombo[3], em sua História do Brasil, que Dom Pedro, comovido, teria dito que “é preciso acabar com isso”. Estava referindo-se ao que informavam as cartas. Diziam elas que as Cortes portuguesas haviam decidido que o Príncipe estaria destituído da Regência e que, em trinta dias, deveria estar em Portugal. Foi diante dessa situação que as cartas chegadas do Rio de Janeiro instavam que chegara o tempo de completar o processo que vinha sendo construído desde final do século XIX, a independência do Brasil. Diz Rocha Pombo[4] que Dom Pedro monta seu cavalo e conclama, informa que o Brasil estava separado de Portugal, e resume o projeto para os brasileiros, o grito de “Independência ou Morte”.

Depois de lembrar como um historiador tradicional e voltado para a organização de uma narrativa heroica e romântica da história do país, talvez eu devesse lembrar como foi-me ensinado a reconhecer-me brasileiro e a comemorar o Dia Sete de Setembro como o momento mais importante da nossa história brasileira.  Comemorar o Sete de Setembro é dizer que é brasileiro e que será capaz de morrer pelo Brasil, como diz o hino que o proclamador da Independência fez, tanto a música quanto a Poesia. O Refrão que aprendi antes do que chamamos hoje de Quinta Série, diz assim “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”.

A mais antiga memória que tenho dessa data e que me liga às demais pessoas que se afirmam brasileiras, é entre as canas do engenho de fogo morto que pertencia ao meu padrinho de batismo, localizado em lugar chamado Eixo Grande. Não sei se participei da caminhada, ou se foi um sonho que tive. Ali, uma tia minha, Djanira, casada com o irmão de meu padrinho (creio que foi o casamento dessa irmã de minha mãe que permitiu que meu pai pedisse a Cazuza e sua esposa Odete, que fossem meus padrinhos) era a professora e eu devo ter, ou desejado, participar, das suas aulas. Tia Djanira fez seus alunos, formados em batalhão, como ela deve ter aprendido quando aluna, para comemorar a Independência do Brasil entre as fileiras de cana, cana que o engenho já não moía, mas fornecia para alguma usina. Brasil, professora, canavial, família, tudo isso se juntou na minha memória como o primeiro retrato que tive do Brasil independente.

Outra lembrança que tenho, é de lido e aprendido uns versos, uns versos de louvor à independência e a Dom Pedro I. Definitivamente ele era o meu herói, o libertador de minha pátria, do Brasil que eu estava cada vez amando mais. Essa lembrança é do tempo em que minha família já havia migrado para o Recife, e eu sonhava em vestir uma galante farda militar e, se fosse necessário morrer pelo Brasil.

Mas então as leituras e as experiências foram fazendo-me compreender melhor o Brasil e como ele se apresentava. Nos anos de 1960, o Recife recebeu mais uma das tradicionais enchentes do Rio Capibaribe, e que veio acompanhada de muitas chuvas. Creio que essa enchente tem uma importância muito grande na minha maneira de ver e viver o Brasil. Um ano antes, havia ocorrido o golpe realizado por civis e militares para derrubar o governo do presidente João Goulart, e diziam que fizeram tal ação para salvar o Brasil do comunismo e da corrupção. Até mesmo, nos meus simples catorze anos, participei da campanha “Dê ouro para o bem do Brasil”.  Então vieram as chuvas, a enchente de 1965, e vi que no Brasil, havia muitos brasis. O Recife havia crescido e poucos haviam notado que crescera na beira do rio, formando a “população ribeirinha” como falava o então prefeito da cidade[5]; o Recife havia crescido com casas erguidas nos morros e barreiras que margeiam a cidade, casas frágeis, com pouca sustentação e que desabaram. E o “Ouro para o bem do Brasil” não apareceu para cuidar do povo brasileiro. E veio a cheia em 1975 e o drama se repetiu. Não se cuidava, ou melhor não se importava, que o crescimento econômico estava produzindo pobres.

Como chegamos a ser, em 2022, quando completamos dois séculos de nação independente, sermos tão ricos e com tantos pobres, com gente sem ter alimento?

  • O MOMENTO DA INDEPENDÊNCIAEO PRIMIRO IMPÉRIO

Quando Dom Pedro I proclamou a nossa Independência de Portugal, a nossa riqueza era produzida pelo trabalho de escravos, de pessoas que eram compradas na África e trazida para o Brasil. Naquele ano de 1822 a população do Brasil era de 4.396.132 habitantes, sendo que 1.107.389 eram escravos. Quer dizer que livres eram 2.488.743, a que se somavam cerca de 800.00 “índios não domesticados”. O novo Estado assentava-se nas mesmas bases que foram firmadas pelos portugueses enquanto foram donos do Brasil: o apoio dos grandes proprietários. Isso significa dizer que não ocorreram grandes mudanças em relação ao passado, foi quase como uma transferência de herança do pai – Dom João VI de Portugal, para Dom Pedro, seu filho, agora proclamado Imperador do Brasil. Manteve-se o modo de produzir riqueza, tendo a escravidão dos africanos como base trabalhadora, uma pequena parte da população branca dedicada ao comércio e, um menor número ainda de proprietários que governavam o Brasil.

  • PREPARANDO A INDEPENDÊNCIA

Mas o ato ocorrido “às margens plácidas” do Ipiranga não foi resultado apenas das vontade e decisões de Dona Leopoldina e José Bonifácio, o que ali aconteceu foi uma culminância de ações realizadas por homens e mulheres desde o século XVIII, e nós estudamos isso quando mencionamos a Conjuração Mineira de 1879, a Revolta dos Alfaiates, na Bahia de 1889, que já demonstravam insatisfação dos proprietários de minas de ouro, e dos artífices soteropolitanos com o tratamento que a Coroa Portuguesa dedicava ao Brasil. Além disso, as mudanças políticas ocorridas na Europa desde a Revolução Francesa que pôs fim à monarquia absoluta naquele país, e desestabilizou a tradição forma de governo dos europeus. As guerras decorrente desse cenário provocou a crise do império espanhol e as consequentes independência dos povos americanos que estavam dominados pela Espanha. A Independência do Brasil, além de ser um anseio dos brasileiros, era também a consequência das modificações políticas e econômicas vivenciadas pela comunidade internacional. Nenhum país está isolado dos demais.

Foram as mudanças europeias que trouxeram a família real portuguesa para o Brasil, mais especificamente para o Rio de Janeiro, pondo fim à condição de colônia vivida pelo Brasil. Foi a tentativa que recolonizar o Brasil que levou a esposa do príncipe regente a aconselhar e direcionar Dom Pedro para tornar o Brasil independente, “antes que um aventureiro lance mão d coroa”, como aconselhara Dom João VI ao seu filho, quando foi forçado a retornar a Portugal em 1821. Dom João sabia que era inevitável que Portugal viesse a perder a aliança com o Reino do Brasil, criado por ele em 1815. Ele teve que sufocar os anseios de independência de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, em 1817. Foram muitos os enforcados e arcabuzados, foram muitos os mártires da liberdade, e muitos foram enforcados no que hoje chamamos de Praça da República, onde está localizado o Palácio Campo das Princesas. mas durante alguns anos era conhecida como Campo dos Mártires. A repressão à Revolução de 1817 foi muito exemplar, uma ação para que os brasileiros não voltassem a pensar em independência. Entretanto o movimento histórico é irreversível e, entendendo o que estava a ocorrer, é que Dom João VI deu aquele conselho político ao seu filho, que o seguiu e tornou o Brasil uma monarquia típica da Europa.

  • O SANGUE DERRAMADO PELA INDEPENDÊNCIA

Uma nação é forjada pelo heroísmo diário de cada cidadão, entretanto, estamos sempre a estudar a história dos heróis que estiveram nos campos de batalhas. Quando estudamos a história de nosso país parece que nem tivemos os heróis anônimos que trabalham diariamente, nem mesmo os heróis dos campos de batalhas, pois elas não aprecem em nossos currículos, em nossas aulas de história. Alguns chegam a pensar que somos um povo pacífico e que nunca fez guerra nem derramou sangue pela terra em que vive e constrói a sua vida e de sua família. No caso de Pernambuco, a semana de 6 a 10 de outubro deveria ser de festejos, pois naquela semana, no ano de 1821, foram expulsos de Pernambuco os soldados portugueses e, depois daquela semana, nenhuma autoridade portuguesa mandou em nosso Estado. Estávamos independentes, e isso foi obra dos habitantes da Mata Norte, liderados pela Câmara de Goiana, Nazaré, Olinda. Foi assim que começamos a ser independentes.

Quando, em setembro de 1822 Dom Pedro levantou o brado da independência, portugueses, em diversas províncias levantaram-se contra e, tivemos a Guerra da Independência e suas batalhas. Uma delas ocorreu nos limites das províncias de Piauí, Ceará e Maranhão, e é conhecida como a Batalha de Jenipapo, nas margens do riacho do mesmo nome, no ligar Campo Maior, em 13 de março de 1923. Mais de duzentos brasileiros morreram nessa batalha que derrotou exército português comandado pelo Major João Fidie.

 “Vaqueiros, roceiros humildes, que lutaram sob o comando dos bravos Luís Rodrigues Chaves, João da Costa Alecrim, Inácio Francisco de Araújo Costa, Salvador Cardoso de Oliveira, Alexandre Nery Pereira Nereu, Pedro Francisco Martins, Simplício José da Silva e José Pereira Filgueiras. Eles permaneceram durante muitos anos no esquecimento. Apenas algumas toscas pedras marcavam o lugar das sepulturas com restos desses valentes, mortos sem que deixassem à posteridade ao menos os modestos nomes.”[6]

Foi um número maior do que os mortos nas batalhas baianas que duraram um ano de quatro meses, que teve 150 mortos, e que encerrada em julho de 1823. Na luta pela independência da Bahia, duas mulheres firmam-se como heroínas: Maria Quitéria, uma jovem mulher que passa a usar roupas masculinas, entra no exército brasileiro e recebida vitoriosa com a tropa na cidade de São Salvador. A outra mulher é a Irmã Maria Angélica, superior do convento da Lapa, onde morreu na defesa da independência.

Teremos mais histórias como essas à medida que pesquisarmos mais o povo brasileiro, não apenas os que governam.

Mas, a separação definitiva veio em abril 1831, com o Imperador tendo que renunciar o poder, uma vez que o povo do Rio de Janeiro levantou-se contra as suas atitudes autocratas, impondo portugueses como ministros em seu governo. Na primeira semana de abril de 1831, a população, em revolta, recebeu o apoio da tropa que havia sido mandada a reprimi-lo, o coronel Francisco de lima e Silva, colocou o exército ao lado do povo, e o imperador foi obrigado a renunciar e voltar para Portugal. O mesmo povo que pediu em janeiro de 1822 para que ele ficasse no Brasil, desobedecendo as ordens portuguesas, em 1831 o obriga a voltar para Portugal, cuidar dos seu interesses, que era o bem de Portugal, o trono de sua filha Dona Maria da Glória.

  • A INSEGURANÇA DOS PRPRIETÁRIOS

A partir de 7 de abril de 1831, sem um rei que simbolizasse a união da nação, o Brasil foi governado por Regentes escolhidos pelo Parlamento, e eles se viram diante do desafio de manter o país unido nas bases que foram definidas nos primeiros anos após a independência. Dom Pedro reagiu violenta e raivosamente contra Pernambuco, a única província que colocou em dúvida a Carta Constitucional que ele impusera à nação. A Confederação do Equador, de 1824, foi um momento político que pôs em risco a sua autoridade, que alguns ainda hoje preferem dizer que foi um movimento separatistas, mas o sentimento dos pernambucanos era de promover o respeito à constituinte que fora eleita e evitar a concentração de poder autocrata, que teve o nome de Poder Moderador. Nos dez anos que se seguiram à saída de Dom Pedro, o Brasil assistiu revoltas lideradas pelos poderosos regionais, como a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul; a Sabinada, na Bahia; as Revoltas Liberais de São Paulo e Minas Gerais; mas também o clamor dos mais pobres como a Cabanagem do Pará e a Balaiada no Maranhão. A maior parte desses movimentos apontam para a insatisfação e temor dos proprietários diante o poder concentrado no Rio de Janeiro, e eles foram pacificados com maior ou menor grau de conversação política; entretanto, os movimentos de caráter mais popular e formado a partir dos escravos e ex escravizados, como a Balaiada e a Cabanagem, receberam repressão terrível. No caso da cabanagem, ocorreu o massacre de quase metade da população da Província, isso para garantir que o Estado seria o Estado dos proprietários de terra e de gente.

Finalmente o acordo chegou com uma ação parlamentar que concedia maioridade ao adolescente Pedro, coroado imperador em 1840. Mais alguns anos de negociações e, finalmente, em 1851, foi feita a Lei de Terras, que impedia o acesso à posse de terra a quem não tivesse fortuna monetária. Formava-se, definitivamente a exclusão dos brasileiros pobres e, dos escravos que viessem a ter liberdade.

  • O GOVERNO DE PEDRO II, PERÍODO DE PAZ

Na segunda metade do século XIX o Brasil foi introduzido, definitivamente na Revolução Industrial, no mundo moderno, não como protagonista, mas como personagem secundário que recebeu, ao seu tempo os benefícios da industrialização. Essa modernização pode ser verificada com a adesão ao sistema Métrico Decimal, e o povo desconfiado não acreditava nas balanças que passam a ser utilizadas nas feiras, por isso a Revolta dos Quebra Quilos, no sertão da Paraíba; o Ronco da Abelhas, em Paudalho e Nazaré da Mata, Pernambuco; o Censo para contar a população, que o povo entende que é para re-escravizar os que haviam conseguido a Carta de Alforria ou descobrir escravos fugidos. A tudo isso o povo excluído resistia. Finalmente, o povo chamava a Lei de Terras de a Lei das Cercas, porque a terra começou a cercada e impedia o povo ter acesso aos mananciais de água, o que fez os períodos de estiagem, as secas geográficas, tornarem-se Secas Sociais, nas quais o povo morria de sede olhando os açudes. Nesse período ocorreu a grande Peste de 1866, data que vocês podem ler em alguns cemitérios criados então, como o de Nazaré da Mata. Em 1877, milhares de brasileiros morreram de fome nos sertões de Pernambuco. Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Alguns foram enviados para a Amazônia, e tornaram-se trabalhadores nos seringais e, enfrentando os sindicatos norte-americanos, tornaram o Acre parte do Brasil.[7] Esse foi também um período de guerras entre as famílias proprietárias pela posse de suas terras, e dessa disputa, parte do povo se torna cangaceiros, prestando serviço a este ou aquele proprietário. Alguns cangaceiros resolveram lutar por conta própria, e foram perseguidos pela Guarda Nacional, que era dirigida pelos senhores de terras. É daí que vem o hábito de chamar “autoridades” de coronéis. E na base de tudo, está o trabalho dos negros escravizados, os mulatos, os morenos, os curibocas, os caboclos e os brancos pobres, todos a serviço dos proprietários.

 Nas capitais a vida moderna parecia tornar-se mais comum, com a chegada dos trens, facilitando o transporte do café, no sudeste e o açúcar no Nordeste, a iluminação noturna das ruas, a introdução de serviços de água e esgotos e, não vamos esquecer, a vinda de milhares de europeus desempregados e destituídos de tudo, que imigraram para o Brasil, como uma alternativa para a mão de obra escrava que, os proprietários sabiam, que logo seriam libertados, como o foram em 1888, após a criação de várias leis, criadas pelo parlamento formado de escravistas, que  objetivavam postergar a Abolição. As leis do Sexagenário, lei do Ventre Livre são demonstração da força dos escravistas na luta contra os abolicionistas Joaquim Nabuco, Luiz Gama, José do Patrocínio, Cruz de Rebouças e tantos outros.

Mas se os anos de 1870 foram de luta abolicionista, foi também a década do Guerra contra o Paraguai, uma guerra que, entre suas consequências está a participação dos negros e índios os campos de batalha, em defesa da pátria brasileira como sua. Muitos negros foram à guerra sob a promessa da liberdade, muitos índios e pobres alistaram-se nos batalhões de Voluntários da Pátria, e nem sempre tiveram uma retribuição por essa dedicação e esse amor a ela devotada. A Guerra do Paraguai alçou o exército como a principal arma da defesa nacional, formada por homens do que chamaríamos de classe média, e do povo comum. A participação dos mais pobres, inclusive de negros escravizados, na guerra contra o Paraguai levou o Exército a se recusar a manter-se como “capitão do Mato”, o exército recusou-se a continuar perseguindo os negros que fugiam do cativeiro. Fazia eco ao verso de Castro Alves:

Auriverde pendão da minha terra,

que a brisa do Brasil beija e balança,

estandarte que a luz do sol encerra

e as promessas divinas da esperança.

(…)

tu que fostes hasteados por heróis após a guerra,

antes fosses roto na batalha

que servires a um povo de mortalha.

Algum tempo depois, com os debates nas ruas, no Parlamento, nos jornais, com a pressão internacional, veio a lei Áurea, de 1888, não como unanimidade, pois vários deputados, como Francisco de Caldas Lins, Barão de Araçagi, representante de Pernambuco, votaram contra a Lei Áurea preparada pelo pernambucano João Alfredo. (GOMES: 2022. P.46)

Mas como nós sabemos, o fim da escravidão, tornou os negros livres, mas sem acesso aos bens que produziam, porque não houve uma política de integração dos negros na sociedade: não foram criadas escolas, e continuaram o uso das leis do tempo da escravidão.

  • A REPÚBLICA – Resumos dos primeiros anos

Um ano depois da festa da Lei Áurea foi proclamada a República, que ficou quase como uma continuidade da monarquia, agora sem o imperador. Foi feita uma nova Constituição que garantia os direitos para os cidadãos, mas o poder não foi redistribuído, pois a República se organizou de modo a manter os grandes proprietários no poder. Ocorreram algumas revoltas, como a liderada por setores da Marinha, e no Rio Grande do Sul, uma Revolta Federalista. Aconteceu que alguns setores populares estavam insatisfeitos com os rumos da política, e no interior da Bahia Antônio Conselheiros organizou a Vila do Senhor Bom Jesus, em Canudos, no Raso da Catarina. Essa reação do povo foi muito reprimida pela República que enviou o Exército para destruir a cidade.

Desde meados do século XIX até 1936, ocorreu o ciclo do Cangaço, que demonstrava a ausência do Estado para proteger os médios e pequenos proprietários e os trabalhadores rurais. Os cangaceiros eram originários desses grupos desprotegidos e reagiram de forma violenta à violência dos grandes proprietários e do Estado ausente. Estamos falando do Sertão, distante das capitais. Mas, também nelas os mais pobres não eram percebidos como cidadãos.

  •  O INÍCIO DO SÉCULO XX

   No início do século XX ocorreu uma nova arrumação no sistema econômico mundial e, mesmo sociedades que não participavam como protagonistas da Revolução industrial sofreram o impacto dessas mudanças. Capitais portuárias como Rio de Janeiro, Salvador e Recife tiveram que promover modificações técnicas nos seus portos e, evidentemente essas modificações mudaram o visual dessas cidades, pois prédios coloniais e do século XIX foram derrubados para a construção de avenidas mais largas, espaçosas para os novos meios de transportes, além de apressarem o processo de modernização gerado pela industrialização. A renovação dos centros urbanos tornou pública a situação na qual viviam os ex escravos e seus descendentes que não foram incorporados à vida política, social e econômica da República. As condições de suas moradias, antigos prédios e sobrados, agora pardieiros, em condições precárias de saúde e higiene eram focos de doenças, agravadas pela ausência de saneamento: coleta de dejetos abriam caminhos para doenças como a Febre Amarela que, agregadas à ausência de uma educação, serviram como estopim para a oposição aos governos que intervinham a serviço da saúde pública, o que ocasionou a “guerra da vacina”. A rejeição à forma de como eram tratados os pobres que viviam nos lugares escolhidos para serem “modernos” tomou forma em embates com a polícia como a Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro, e o surgimento de valentões, capoeiristas que dominavam as ruas do Recife. A insatisfação dos pobres sempre foi tratada como um “caso de polícia”. Os confrontos e lutas continuaram ao longo do século XX, e eles ocorreram de maneiras diversas e, na música e danças populares temos os grandes exemplos, pois foi neles que a criatividade do povo brasileiro apareceu no Frevo, nas estreitas ruas do Recife, no Samba, nas favelas do Rio Janeiro.

Faz cem anos que o Brasil realizou uma grande festa para celebrar os cem anos de independência, uma festa que contou com a coordenação geral do ex presidente Epitácio Pessoa, e manteve o Brasil de então em destaque mundial que ele adquiriu na Conferência de Haia (1907) pela ação de Rui Barbosa, e nas negociações após a Primeira Guerra Mundial (Paz de Versalhes, 1919), com comitiva liderada pelo mesmo Epitácio Pessoa.

Enquanto uma nação surgia, travando um embate para não sucumbir à fome, trabalhando sem proteção do Estado, construindo suas moradias nas margens dos rios, nas encostas das ladeiras e morros, o “desejo de conciliação” que sempre aparece nas elites quando elas percebem que as mudanças são inevitáveis, as obrigou a fazer o reconhecimento de direitos sociais e políticos como o Voto Feminino, as Leis trabalhistas. Apenas após 1930 é que a elite governamental admitiu esses direitos, mas, uma vez mais, não cuidou de criar as condições necessárias para que esses direitos fossem usufruídos pela população.

A partir de 1939 foi instaurada uma ditadura que durou até 1945 e estabeleceu formas de controle do pensamento, da criatividade, ao mesmo tempo em que estabelecia as bases das relações de trabalho, com deferência especial para o grande capital. A Segunda Guerra Mundial, iniciada na Europa, deixou claro que parte da elite detentora do capital cultivou simpatias pelos regimes totalitários nazifascistas da Alemanha e Itália. A influência da ditadura representada por Getúlio Vargas e pelo interventor Agamenon Magalhães, em Pernambuco, é sentida em nossos dias, pois os que aspiram ser ditadores estão sempre a utilizar dos processos democráticos com o objetivo de destruir a democracia.

  •  SÉCULO XX: segunda metade

Após o final da Segunda Guerra Mundial novos rumos foram trilhados pelas nações: os países europeus encaminharam-se para uma vereda na qual o capitalismo aceitou a aplicar algumas das teses socialistas, o que gerou um sistema reconhecedor de direitos sociais, fazendo surgir a Social democracia, o Estado do Bem Estar Social, para barrar as tendências totalitárias contra as quais lutara; nações asiáticas e africanas floresceram no processo de descolonização, fazendo surgir novos Estados; na América Latina, procurando evitar a sedução dos regimes ditos comunistas, foram incentivadas iniciativas para fazer prosperar o capitalismo na região, o que formarem-se estados populistas nas frágeis democracias.

No Brasil, com parte de seu território marcado por longas estiagens, fenômeno geográfico das secas, deu-se início ao processo de industrialização tendo por base a Companhia Siderúrgica Nacional[8], em Volta Redonda, RJ, o fortalecimento de São Paulo como polo industrial, a criação da Petrobrás e outras empresas estatais para assegurar a entrada do Brasil como parceiro da economia mundial e liderança desse processo na América Latina. E, como símbolo dessa época desenvolvimentista: a construção de Brasília. O Nordeste viu-se envolto com a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste[9]. Mas todas essas mudanças foram realizadas sob a direção dos descendentes dos senhorios de terra e de gente. Foram mudanças superficiais e que não atingiram o âmago da nação. O temor de perder o controle da condução da sociedade, levou as elites econômicas e sociais, também intelectuais, a convidar os militares para dirigir o país.

5.3 O GOLPE DE 1964 e a ditadura

Assim nasceu o golpe de 1964, que se apresentou como uma revolução e assim se fez chamar nos livros didáticos, os que dão início ao processo de formação nas escolas. Então, para atender as necessidades do comércio e da indústria, foram criadas escolas públicas para o atendimento e ensino dos filhos dos trabalhadores. Até então eram poucas as escolas públicas, e elas atendiam principalmente os filhos da classe média. A expansão numérica das escolas públicas acarretou o declínio da qualidade de ensino. O retorno ao ensino de boa qualidade nas escolas públicas é hoje a principal luta dos professores, mas como os gestores públicos – prefeitos, governadores – e os legisladores demonstram interesse secundário com a educação escolar, essas escolas sempre apresentam carências, algumas funcionado sem banheiros, água, biblioteca, teatro e área de lazer. Tudo isso acompanhado com os baixos salários que recebem os que se dedicam ao trabalho, quase missionário, de fazer educação.

Foram duas décadas de ditadura, com alguns ganhos e muitas perdas; uma grande perda de tempo que já parece esquecido. Foram tempos dolorosos, a Brasil parecia que iria engrenar no processo virtuoso do crescimento, mas esbarrou na tradicional gula pelo poder econômico e político. Grandes projetos foram postos em prática – Usina de Itaipu, estrada Transamazônica e, contudo, o Brasil saiu mais pobre, mais endividado da experiência ditatorial. Alguns, contudo, viram seu patrimônio pessoal crescer, enquanto as favelas se multiplicavam nas grandes e médias cidades e nas periferias de algumas pequenas.

Interessante é que foi durante a ditadura que se viveu com algum sucesso o debate sobre os Direitos Universais do Homem, debate necessário para condenar as práticas de torturas contra os que se levantaram contra a ditadura. No mesmo ano em que é instituído a lei maior da ditadura, o Ato Institucional de número 5, começou o grande debate sobre a Carta da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos. A sociedade motivou-se sobre o assunto, especialmente a classe média quando percebeu que seus filhos eram contra a ditadura e estavam sendo perseguidos e mortos, ora nas ruas, ora nos quartéis. Enquanto a polícia perseguia apenas os pobres, a elite e os classe média não percebiam o que acontecia. Como atualmente, poucos se importaram com as torturas que nunca deixaram de acontecer em algumas partes do sistema. Aliás não parece ser à toa que hoje haja liberação de armas para caça, como se houvesse tantos animais em nossas florestas devastadas e queimada, elas que nunca tiveram leões, elefantes, hipopótamos e outros cujas mortes serviram para o prazer dos europeus na África.

5.4 FINAL DO SÉCULO XX E INÍCIO DO SÉCULO XXI

O esgotamento da política ditatorial e o apoio perdido internacionalmente, forçaram os militares entregarem o poder, e o fizeram de modo relutante, e em 1985 o Brasil recomeçou a construção de uma sociedade democrática. Vários governos, eleitos diretamente pelo voto popular, esboçaram e realizaram ações que promoveram algumas inserções das classes mais pobres no mercado de trabalho, nas universidades públicas pelo Sistema de Cotas, que agora faz dez anos; e por programas de financiamento em universidades e faculdades particulares fez crescer o número de pessoas com educação universitária, embora não tem sido solucionado a questão de oferta de educação básica para toda população. Com muito esforço os canais de televisão começam a apresentar um quadro de repórteres mais colorido, como é a população brasileira, mas este movimento veio a tornar explícito o racismo estrutural de nossa sociedade, um racismo que sempre existiu e que sempre foi negado. E se ainda não foram integrados os negros e pardos, menor ainda tem sido a integração dos povos originários.

  • CONCLUINDO DE MANEIRA INCONCLUSA

Neste segundo centenário da Independência do Brasil, não observamos uma preparação alegre para os festejos de 7 de setembro, como ocorreu no primeiro Centenário. Mais que nunca a sociedade brasileira está dividida e em dúvida sobre o que ela é, o que ela deseja ser. O comportamento da autoridade maior do país não é de organização coletiva capaz de unir os brasileiros em uma família mítica. Trocou-se o mito coletivo da nação pelo mito privado de uns poucos favorecidos, que parece ter os demais brasileiros como inimigos a serem eliminados. Chegamos ao Segundo Centenário sem uma maioria que assuma a nação com todos; continuamos sob a direção de uma minoria que desdenha do povo, que o deixa famélico para melhor manipulá-lo, como também manipula partidos políticos e políticos tíbios que evitam dizer o que pensam. Mas continuaremos, em nossas escolas a esclarecer que além das aparências, o Brasil há de contar sua história com a história de todos que o fazem, não um gigante “deitado eternamente em berço esplêndido”, mas um povo que luta, cheio de esperança com a “clava forte da justiça” pois os filhos do Brasil não fogem à luta, no amor e na defesa da Pátria Amada. E nossa pátria precisa de carinho, não de guerras, não de armas. Nossa pátria, nossa nação, carece de livros, bibliotecas, laboratórios de pesquisa e estudo.

FELIZ FESTA DO NOSSO BICENTENÁRIO.

BIBLIOGRAFIA

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A REVISÃO DO PARAÍSO: OS BRASILEIROS E O ESTADO EM 500 ANOS.  Mary DEL Piore (organizadora). Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

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—        Classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

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Batalha de Jenipapo – https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_do_Jenipapo visto em 05/07/2022


[1] Palestra dita no Erem Professora Benedita de Moraes =, Macaparana, PE. Agosto de 2022, e no Colégio Santa Emília, Olinda, em Setembro de 2022,

[2] PHD em História pela Universidade Federal de Pernambuco, Professor Associado III, Departamento de História da UFPE

[3] ROCHA POMBO, José Francisco da.  História do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos. 14ª edição. 1967.

[4] Rocha Pombo viveu entre 1857 e 1933, tendo experimentado o final do Império e o início da República, inclusive os festejos do Centenário da Independência do Brasil. 

[5] Augusto Lucena, que havia sido eleito vice-prefeito com Pelópidas Silveira, assumiu a prrefitura da cidade após a cassação do mandato do prefeito, acusado de ser comunista.

[6]  https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_do_Jenipapo

[7] PINHEIRO, Francisco José. Ceará: Seca e Migração. Análise histórica da incorporação do Ceará como fornecedor de mão de obra ao mercado Capitalista in A Igreja e a Questão Agrária no Nordeste, subsídios históricos , SILVA, Severino Vicente da (organizador). São Paulo: Edições Paulinas, 1986. [23-30]

[8] A Companhia Siderúrgica Nacional foi criada em 1941, como parte da colaboração do governo estadunidense no esforço de guerra contra as forças do nazifascismo.

[9] A SUDENE foi criada em 1959 com objetivo de integrar o Nordeste no processo industrial brasileiro. Tem com fundador o economista paraibano Celso Furtado

O Escravo Francisco: qual a tradição: a do Medo ou a da Liberdade?

segunda-feira, novembro 14th, 2022

O ESCRAVO FRANCISCO: QUAL TRADIÇÃO: A DO MEDO OU A DA LIBERDADE

Prof. Severino Vicente da Silva

Então saímos de casa e olhamos o mundo que carregamos em nós. Quase sempre só vemos o que já conhecemos. Quando encontramos algo que nos é desconhecido, temos que parar e comparar com o que já conhecemos, e.  nesse exercício, podemos crescer em conhecimento, ou podemos não sair de onde estamos. Sempre temos a possibilidade de negar o que de novo nos vem.  Estranha essa situação. Nos últimos dias percebi que, ao sair para usufruir ou conhecer uma cidade histórica, dessas que são nomeadas Patrimônio Cultural, tenho firmado, após conversas aleatórias com seus moradores, percebi que eles não sabem do que estamos falando ou perguntamos. Estaria conversando com estrangeiros em sua própria terra?

Às vezes seria melhor que assim fosse, pois que podem estar cultivando algo que não deveria ser guardado na memória, exceto para que não viessem a ser repetidos. Bem, na história, aprendemos que nada se repete, não da mesma maneira.

Se somos o que fomos, o que somos é resultado do foi vivido no passado, ou seja, o passado nos acompanha de maneira quase definitiva. O Brasil foi sendo gestado com um pequeno número de pessoas a impor suas vontades, desejos e projetos sobre um número enorme de outras pessoas. O Brasil cresceu com a escravidão, terminada oficialmente em 1888. Foram cerca de trezentos e cinquenta aos de abuso, de destruição de pessoas enquanto se construía o Brasil. Relações de ódio, medo, simpatia, ojeriza, carinho, perdas, frustrações, guerras, mentiras, tudo isso e muito mais fez parte da formação do Brasil: devemos reconhecer que foi assim a nossa formação, como foi a dos povos e nações com as quais convivemos no cenário mundial. E tudo isso deve ser parte da memória explícita, não apenas da memória coletiva e reprimida que carregamos. É necessário saber o que fomos e como fomos para entender o que somos.

Falamos da escravidão que tudo criou no Brasil. Joaquim Nabuco ensinou que não há coisa neste país que não tenha o trabalho da mão cativa. O cativo indígena, de quem tudo lhe foi tirado, e o cativo africano a quem nada lhe foi dado. Houve, e há, outra parte que tudo tomou, tudo teve e tudo negou. No tempo presente: tudo tem, tudo tem, tudo nega. Tomou terras do indígena para si, e também lhe tomou a liberdade, os corpos saudáveis de suas mulheres, e lhe tomou e sua alma; tomou para si o trabalho do africano escravizado, tomou seus corpos, seus sonhos, sua alma. Com isso tudo fez surgir um povo moreno, mestiço, a quem tudo é negado, de quem lhe é tomado o resultado de seus trabalhos. Assim foi sendo construído um país que só “pode” ver o mundo com os olhos daqueles que sempre o dominara, que tudo tomou para si.

 Joaquim Nabuco, dizem, era um flâneur, um vadio errante, em suas passagens pela Europa. Olhava ao seu redor, gozava os benefícios que a sociedade inglesa lhe dava, e nada que fizera para o que estava usufruindo. Seria o Pedro, segundo imperador do Brasil outro Flâneur? Sem poder ir a Europa, tento ser flâneur no Brasil. Será isso possível? Joaquim Nabuco em suas andanças inglesas não conseguia ver que estava no interior das minas de carvão. O Imperador se encantava com a França e seus escritores, mas não parece haver a presença da comuna de Paris em suas memórias. Folheando livro de autor alagoano, vejo a hipótese que, influenciado por Victor Hugo, Pedro II começou a comutar a pena de morte definida para os escravos que matassem ou ferissem gravemente seus donos. Era uma lei de 1835, que jamais foi abolida. O senso político do Imperador esteve sempre em luta com a sua convicção na defesa da vida, contra a pena de morte, segundo memorialistas e historiadores. Em relação ao Brasil que se formava com o trabalho escravo, o Imperador se portava como um flâneur. Joaquim Nabuco parece ter abdicado da irresponsabilidade do a Andarilho e se tornou abolicionista. Aliás, ainda estudante defendeu um escravo que matara seu dono, evitando a forca, determinada pela lei de 1835. Como os que estudam história sabem, o Período Regencial (1831-1840) foi um tempo de muitas rebeliões, e a lei que estamos a nos referir foi criada como resposta do Parlamento, em sessão secreta, às rebeliões, especialmente as que envolviam os escravos em luta pela liberdade.

Artur Ramos é um dos brasileiros que dedicou parte de sua vida intelectual para compreender do que é feito o Brasil, atentando para a participação do negro na formação do Brasil. Artur Ramos nasceu na cidade de Pilar, Alagoas. A cidade cresceu com o cultivo da cana e da pesca do Bagre. Mas a cidade agora, como muitas cidades históricas, quer ser local de atração turística. Está a se formar um parque para turismo religioso e, no desejo de alguns, pode vir a ser um local para um teatro aberto, em torno de um fato histórico, pouco registrado nos livros didáticos, na memória das gerações. O Acontecimento envolve Pedro II, o imperador que dizia querer ser professor, mas que não parece ter tido interesse em formar um rede de escolas. Ainda bem, pois os escravos, maior parte da população, não teriam tempo para ir aprender sob a orientação de professores. Seria um desastre para os donos dos escravos. Alguns historiadores simpáticos ao imperador, e à sua cidade protegida por Nossa Senhora do Pilar, informam que um acontecimento na cidade marca o fim da pena de morte no Brasil, pois foi em Pilar que ocorreu último enforcamento de um escravo, a quem o imperador negou clemência. Estamos falando do “escravo Francisco”, levado à forca no dia 28 de abril de 1876. Ele matara seus donos, teve um processo que durou dois anos, mas o processo foi destruído. O equilíbrio político do Imperador evitou a comutação da pena de morte em prisão perpétua, como pedira o Escravo Francisco, pois entendeu que os proprietários locais poderiam revoltar-se contra o Império.

O certo é que o Escravo Francisco, após orar na Igreja do Rosário, a pedido seu, seguiu a pé ao local de sua execução, no Sítio Bonga, acompanhado por uma multidão, mais de mil pessoas em uma cidade que então possuía treze mil habitante. Veio gente de muitos lugares para ver o enforcamento do Escravo Francisco. Uma tradição historiográfica diz que Francisco, após se despedir jogou-se antes que o carrasco agisse. Não permitiu que definissem o momento de sua morte, escolheu ele o momento de sua liberdade. 

Anualmente, a cidade de Pilar refaz esta cerimônia, faz o teatro do enforcamento, a cada 28 de abril seguindo o roteiro que o Jornal de Alagoas fez na edição do domingo 30 de abril de 1878. Os que pretendem tornar turístico este evento, esperam que a cada ano venham mais pessoas para assistir, acompanhar o mesmo trajeto que Francisco fez até o local do seu enforcamento. Soube de pessoas que choravam, enquanto outras diziam que tinha mesmo que ser enforcado para servir de exemplo. Caso prospere essa ação, qual memória ficará: a do escravo que reagiu ao tratamento de coisificação a que era submetido, ou a necessidade de que o exemplo continue a ser dado, e os dominados sejam ensinados que não devem reagir à subordinação?  

   Deodoro da Fonseca, Alagoas, 14 de novembro de 2022

Nota:

  1. Informações foram encontradas em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/jornal-de-alagoas-narrou-em-detalhes-ultima-pena-de-morte-executada-no-brasil
  2. SANT’ANA, Moacir Medeiros de. Pilarenses ilustres. Maceió, 2010.

Álbuns de família e jornais da família

sexta-feira, outubro 9th, 2020

Ler os jornais diários é como folhear um álbum antigo de fotografias de família, observamos como o tempo tem passado e como não o percebemos. Claro que a fotografia de meu avô, parado, com seu terno branco e chapéu criando condições para que vejamos o quão grossas eram suas sobrancelhas, é antiga, tomada antes do meu nascimento, pois que ele já havia morrido quando nasci, entretanto ele está vivo e carrego comigo o seu nome e quase tenho o sobreolho tão espesso quanto o dele. E quando olho a foto de Vó Alexandrina, quase sinto o balançar da cadeira, no fim da tarde, na calçada de sua casa em Serraria. Eu era tão pequeno, tão menino, faz tanto tempo, mas ela está viva. Claro que faltam algumas pessoas neste álbum, pois que elas quiseram sair e suas imagens e lembranças se apagam lentamente. Exigem até um esforço para lembrá-las no tempo em que me aceitaram como parte de sua família. Assim, são os jornais. Procuramos neles o que podem nos dizer de nossa família social, mas vemos apenas sombras.

Ler os jornais, do dia ou dos anos imediatamente passados, nos impedem de lembrar algumas passeatas, algumas listas coloridas nos rostos, alguns sorrisos que anunciavam uma possibilidade de Brasil. Mas as cores desbotaram muito rapidamente. Mais vivas estão as imagens da passeata dos Cem Mil, ali, no Rio de Janeiro. Eram rostos sérios, carregavam o peso da morte de um estudante, e ela simbolizava a morte de uma etapa da vida política brasileira. Na foto, que foi capa de revista, não aparecem negros. “O ano que não acabou” ainda não percebera, ao menos os jornais, que o estudante assassinado não era branco. Ali, naquele ano morria os Anos Dourados, começavam os anos em o chumbo começou a ceifar a vida de jovens filhos de “gente de bem”. Lembro de um padre, vigário geral, escandalizado porque haviam prendido, talvez matado o filho de uma ilustre família católica mineira (Mota Machado?), gente de estirpe. Ainda não haviam percebido que em 1964 houvera uma luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e, nos bailes se cantava “as viuvinhas do artista James Dean”. O Brasil via morrer uma juventude que, segundo os governantes, deveria estar nas academias militares e nos bailes de formatura, ainda não percebera mudanças na sociedade. A morte dos universitários provocou a indignação e começou o declínio do poder que tudo podia. Não por considerar os brasileiros, mas porque tinham que salvar esses jovens da morte e do comunismo, mesmo que tivessem que matar alguns. Também pensaram assim em relação aos indígenas, e construíram a Transamazônica, escavaram a Serra Pelada, destruíram a Carajá enquanto o poeta melancólico dizia que “Itabira era um retrato na parede”. 

Os jornais diários dizem isso, hoje: Jovens oficiais dos anos setenta, hoje  generais, vingam-se, chamando de heróis os que mataram os jovens da elite que apressavam o fim da ditadura. Eles voltaram com o apoio dos que não entenderam que a vida em  liberdade está sempre em risco. Na época em que os atuais generais eram capitães costumava-se repetir que ‘o preço da liberdade é a eterna vigilância’. Os que deviam vigiar, viajaram no que parecia o poder, finalmente. Os jornais de hoje mostram que a sociedade não foi vigilante. Entre solipsismos e relativismos, com as drogas, as novelas, os filmes, as graças, as viagens internacionais, o degustar as belezas turísticas do país sem olhar o povo que vivia por ali; tudo virou um culto do prazer individual, da riqueza para si, de uma divindade que só agrada.

 Os jornais de hoje mostram que os poderosos do dia cultivam o temor de forças externas ao mundo que querem construir. Agora retomam os discurso de que forças estão sempre a conspirar contra os ideais dos capitães que foram impedidos de serem torturadores, como Ustra. De certa forma eles têm razão, pois com as torturas perderam o apoio externo que recebiam. A ditadura que permitiu Ustra começou a desmoronar quando franceses começaram a envergonhar-se do que fizeram na Argélia e quando os norte-americanos sucumbiram no Vietnam e passaram a acossar os antigos aliados, exigindo que deveriam mudar. Não mudaram, mudaram-se, mas parece que retornaram com maior cinismo e prepotência, de novo com o apoio da ignorância externa e da ganância interna. Bem que podemos

Os jornais de hoje mostram que esse passado está vivo. Morto, parece estar o presente, com os zumbis afogados em filmes que cultuam a vitória do mal, pastores estupradores, pastoras assassinas, padres pedófilos, médicos doentes, espiritualistas acumuladores, juízes venais, tudo facilitando a ditadura disfarçada. Sim, aprenderam que o pão distribuído pode parecer justiça social enquanto se produz famintos. E, contudo e por isso, aprova-se o governo, como se aprovava o governo Medici.

O ano que não acabou, só acaba se houver mudanças de objetivos, para além dos limites aos quis nos acostumamos usufruir envolvidos em questiúnculas que não permitem atentar aos perigos a que estamos levando a sociedade a natureza. Famílias que não se cuidam, desaparecem porque permitiram seus membros desaparecessem. Uma família deixa de existir quando coloca-se o interesse de um membro acima daqueles valores que construíram e mantiveram a família unida. Cada geração toma a decisão de continuar ou não a família, a tradição forjada pelos antepassados. É evidente que nem todos os valores vividos pelos antigos merecem ser cultivados e, talvez, na escolha dos valores, os que levariam o desaparecimento familiar devem ser abandonados. Esses devem ser chamados de desvalores. Em nossa sociedade são muitos os desvalores a serem esquecidos: o racismo e seus corolários: a mentira, a falsidade, a inescrupulosidade, entre outros. Mas essas são as cores mais vivas do jornais do dia, essas têm sido as notícias mais comuns em nossos dias. Nossa sociedade está murchando e as cores que alegravam a face de uma geração desbotou, foi esquecida ou vendida e tornada sem esperança.  

O poeta nos ensinou que Raimundo, para o mundo era só uma rima. Agora devemos entender que mourão embora pareça, nunca rimou com solução. Exceto para prender a boiada e matar os bois.

Drama 17 – onde está a solidariedade?

segunda-feira, julho 27th, 2020

Antes que julho termine o Brasil contará noventa mil mortos pela Covid 19. É um número alarmante. São muitas as cidades brasileiras que não alcançam esse número de habitantes. Ainda morrem cerca de mil brasileiros diariamente, e tal montante não parece influir no comportamento dos brasileiros, nem na inteligência dos que governam o país. O que nos ocorre? Porque tal situação e comportamento crescem fecundamente em uma nação, em um povo a quem se atribui hospitalidade, alegria, cordialidade e tantas virtudes cantadas, por estrangeiros que nos visitam e por muitos de nós. Gonçalves Dias, vivendo na Europa, escreveu afirmando que “as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”. As aves europeias gorjeiam diferente, sem a tropicalidade fulgurante, sem a verdura exuberante das florestas, como afirmava o escritor de Porque me ufano do meu país, o conde Afonso Celso. Mas, algo acontece que nos impede a vencer a pandemia Covid 19, já sob controle em muitas regiões do mundo, seja no Oriente edulcorado por alguns, seja no Ocidente europeu, destratado por outros. Mas, na América, o novo continente, não se encontrou o caminho para conviver com o vírus biológico do século XXI.

Sabe-se, hoje, que na Itália há regiões com índice zero de coronavírus 19. Na Úmbria, ali na Itália, hoje é zero de Covid 19. Seriedade, disposição para cumprir o fechamento das cidades, a circulação das pessoas, tudo isso levou a esse resultado. Devemos considerar alguns pontos para entendermos tal sucesso: lideranças políticas e morais dignas de merecerem a confiança do povo. Um prefeito que admite o erro e pede desculpas à população por ter colocado interesses econômicos além do valor da vida humana; a presença inspiradora de um líder religioso comprometido com a vida humana, entendo-a sagrada, pondo-se humildemente a serviço do seu povo, ajoelhando-se solitário e solidário com a humanidade, rogando forças para vencer a adversidade. E, principalmente, o espírito de solidariedade dos italianos, superando os desejos privados e egoístas por entender que civilização só é possível com a compreensão de que nada se constrói sozinho, que só agindo como uma unidade é que se encontra forças para vencer, até mesmo sem as drogas milagrosas e as vacinas, força tão terrível da natureza. A Itália e outras regiões do continente europeu venceram o desafio por agirem solidariamente, as nações e os cidadãos. Semelhante vimos acontecer no Oriente, cultivador de tradições que a todos unem, acima dos sofrimentos a que são submetidos ao longo dos séculos. Só se pode vencer o vírus físico se houver, além dos anticorpos naturais, os anticorpos sociais da solidariedade, da compreensão, do comprometimento, ainda que pequeno, com toda a sociedade.

E então, ao nos voltarmos para o continente americano, observamos uma sociedade voltada para o mito do self made man, prefigurado em personagens vividos, na tela, por John Wayne, aqueles que tudo resolvem por sua vontade, coragem pessoal. E seus armamentos aliados a uma religião civil fundamentalista, aliada à leituras fundamentalistas dos textos bíblicos, que produziu um cristianismo impermeável aos sentimentos humanitários, capaz de lutar contra o cristianismo que fundamentou a civilização Ocidental no que há de melhor e no que a diferencia. O fundamentalismo cristão, o tão louvado espírito do capitalismo, impedem a solidariedade, promovem o assassinato público dos cidadãos de cor, e tem como lema a ideia de que tem que estar acima de todos, como a loucura própria dos nazistas, seguidores do Minha Luta, e que mostrou o vírus da imoralidade, ou amoralidade, nos campos de concentração nazista. Na Rússia os números são altos, mas teme-se que o governo russo esconda dados. É a tradição mantida pelo novo Czar.

No Brasil, que é o tema inicial dessa nossa conversa, observamos que não tivemos liderança nacional, nem civil nem religiosa. Os religiosos quando se pronunciaram, herdeiros do Evangelical Belt norteamericano, foi no sentido de que “Deus salva os seus” e que basta a fé para evitar o Coronavírus. Hoje alguns de seus membros ocupam pastas ministeriais, no governo federal. Os líderes católicos preferiram, parece, lavar as mãos, tiveram medo de comprometer-se, agiram como agiam os bispos antes da CNBB. Isso permitiu que alguns padres estrelados e famosos fossem mendigar ajuda ao césar, e alguns outros saírem em defesa do uso de armas. Que diriam Dom Luciano Mendes, Dom Hélder Câmara, Dom Evaristo Arns? Só agora, após 80.000 mortes, vai sair um documento coletivo. Não houve uma voz das religiões conclamando à solidariedade, salvo exceções que não receberam apoio de seus grupos. Ficamos entregues à sanha de um líder que sonha com o povo (seus seguidores) armado para tornar mais fácil um golpe de estado, como disse em reunião ministerial de 22 de abril. Só nos resta esperar que o “espírito de 76” anime os norte-americanos a derrotar o que de pior sua cultura produziu, assim, quem sabe, derrotaremos, ou afastaremos da cena, o que de pior foi produzido no Brasil no século XX.

Quanto à trajetória da Europa na luta contra a Covid 19, é como dizia o poeta: As Aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.  

Drama 9 – setembro 22; maio 88; maio 20

quinta-feira, maio 14th, 2020

“Caprichoso ( ….) não punha calma no pendor de querer sempre triunfante o seu alvitre. Desamava Conselhos. Quer isso dizer que temperamentalmente possuía minguados recursos para a função de reinar sem governar (…) da categoria a que deveria pertencer. Daí não vir jamais a compreender ou aceitar a engenhosa combinação do poder popular com as instituições…”

O texto acima é de Octávio Tarquínio de Sousa, na sua obra Vida de D. Pedro I, é sobre o objeto de suas pesquisas. Esse é um retrato do nosso primeiro governante após o rompimento dos laços estabelecidos pelo Reino do Brasil Unido ao Reino de Portugal e Algarves,  consequência de séculos de domínio português sobre o Brasil. Tal rompimento foi por ele assumido em um rompante próprio de sua personalidade mercurial, entretanto vinha sendo banhado em sangue desde o final do século XVIII, e foi  urdido pela ciência de José Bonifácio que fez a confusão entre o interesse de alguns com o interesse da pátria. Tudo isso parece ser uma das marcas que trazemos em nossa política. O voluntarismo de governantes que põem a sua vontade acima dos objetivos da nação, destes se aproveitando em momentos de confluência, sem contudo perder a oportunidade de afastar aqueles que não formam com sua orientação, desejo ou juízo. Esses governantes que povoam o tempo de nossa história são mantidos por uma aristocracia de proprietários de terras, clérigos de diversas igrejas (inicialmente eram apenas os católicos romanos), mais recentemente juntaram-se os industriais e banqueiros, esses e alguns  promotores de algumas ações paternalistas, de modo a manter a população subjugada a um patrão-pai. Assim formou-se o Estado brasileiro, uma nação, hoje com 220 milhões de habitantes, dos quais apenas cerca de 1/3 tem acesso aos bens culturais e civilizacionais, como está a nos provar a atual pandemia.

Em dois anos completar-se-á dois séculos do rompimento dos laços políticos e jurídicos que ligavam o Reino do Brasil ao Reino de Portugal e Algarves, mas quando este fato ocorreu, foi decidido que o novo Estado seria formado por duas grandes nações: a dos proprietários e seus acólitos bajuladores, mas só na medida em que sejam capazes de pensar como o chefe,  e manter distância dos interesses dos não proprietários.

Nas primeiras quatro décadas (1820-1850), a nação dos proprietários do novo Estado, viu-se em uma constante guerra contra a outra nação, até submetê-la, para então criar uma legislação garantidora do seu futuro, ainda que fosse obrigada a pôr fim à escravidão. Enquanto  isso não ocorria, buscou-se, entre os destituídos da Europa, o material humano para manter a submissão dos eternos insatisfeitos com a ordem que os prende à margem da nação, exceto em tempos eleitorais, de modo a confirmar a sua hegemonia. Mas o ato de votar, só veio a ser reconhecido como direito universal muito recentemente, pela Emenda nº 25  à Constituição de 1967, no ano de 1985. Contudo os governos que se seguiram falaram muito em “educação de qualidade”, e nenhum deles percebeu que deveriam preocupar-se com “educação de BOA qualidade”. E sem uma educação de BOA qualidade, mesmo que saiam da caverna, muitos para ela retornam, assim como os que saíram da escravidão do Egito, na primeira dificuldade, tiveram saudade da “sopa de cebola” que recebiam ao final de um dia extenuante de trabalho. Essa é uma das razões porque, após dois séculos do Brasil livre dos laços portugueses, estamos assistindo parte de nossa sociedade sonhando com o conforto das senzalas, das dádivas do tipo “peixe da semana santa”.

Neste dia que escrevo essas palavras, completa-se 132 anos do estabelecimento legal do fim da escravidão no Brasil, mas essa data não coincide com a decisão de unir as nações que formam o Estado Brasileiro, pois os libertos não viram a terra libertada. Os escravizadores da terra estão muito ativos, uma vez que, os que para o Brasil foram transplantados no final do século XIX, a eles se aliaram, tornaram-se eles, assumiram a sina de manter as nações separadas, parece que vieram para aprofundar as diferenças, e assumiram em realizar o passado crendo estar construindo o futuro.

Nos faltou uma educação de BOA qualidade para que os que saíram das matas, das senzalas. Sem essa educação estaremos sempre à ‘disposição’ dos voluntariosos que se apresentam como salvadores dos carneiros enquanto os encaminham para o matadouro.

Dia do Índio? Dia do povo brasileiro?

domingo, abril 19th, 2020

Pois então estamos no 19 de abril, data que foi estabelecida como o Dia do Índio, para que não fosse esquecido o aniversário de Getúlio Vargas, sempre comemorado com festas durante a ditadura que muitos querem esquecer para manter limpo o nome de suas famílias; mas é também dito como o Dia do Exército, pois que o ligaram desde sempre à Batalha do Monte Guararapes, em Jaboatão, Pernambuco. A vitória que teve a participação de índios, negros, mestiços e alguns brancos contra os holandeses, é vista como sendo simbólico da formação de um Brasil múltiplo em tradições de povos e culturas, por isso a prefeitura de Jaboatão dos Guararapes anuncia em placas nas entradas da cidade “aqui nasceu a pátria”.

E o dia começou com a leitura de três amigos da rede de amizade virtual. O primeiro deles fala do exército. Não é um artigo escrito, mas um depoimento da historiadora Marcília Gama sobre uma instituição, criada no tempo em que Getúlio Vargas, ainda não criara a ditadura, mas a preparava: o Departamento de Ordem Pública e Segurança – DOPS. O golpe do Estado Novo e a ditadura que se seguiu só foram possíveis com o apoio do exército. O DOPS, órgão do Estado, praticamente avançou sobre todo o século XX, marcado pela presença do ditador que veio dos Pampas. Deslindar os caminhos do DOPS em Pernambuco foi a grande tarefa que se impôs Marcília Gama, a quem entrevistei em meu programa (https://www.youtube.com/watch?v=PncnwzhtRc ) da Rádio Universitária AM, atualmente Rádio Paulo Freire. Quando a entrevistei, Marcília acabara de alcançar o Mestrado em história, e fazia suas pesquisas, auxiliando a desanuviar as sombras que escondiam as ações dos agentes do Estado, em guerra constante contra o povo, embora dissesse que era contra o comunismo. Devemos ter em mente que os ditadores nunca defendem o Estado, defendem o seu estado social, os seus interesses pessoais e, o DOPS e toda a rede na qual era partícipe, esconde e confunde. Muito feliz de começar o dia ouvindo Marcília Gama, nessa entrevista que ela concedeu a projeto da Universidade Federal Rural de Pernambuco, trazendo novos olhares de historiadores sobre a ditadura de 1964-1985, tempo de domínio das Forças Armadas, Exército à frente.

A segunda leitura foi mais amena, um texto de Marcelo Cavalcanti anunciando que virá uma página com o título Atrevido com Estilo, com textos sobre o Recife dos anos sessenta, o que pode ser uma nostalgia ou depoimentos de quem viveu uma época em que, para alguns, o mundo era apenas o que era originário dos centros culturais, e ainda não se oferecia a oportunidade para o surgimento da cultura brasileira. Neste texto ele narra como foi vivido um São João entre casas de família abastada, uma passagem rápida pelo povo que dançava xote e termina em um banco de praça. Vai ser um percurso interessante, verificar se houve realmente esse engajamento com a cultura do povo brasileiro, que não sabia falar inglês e curtia os Beatles nas letras de Nazareno de Brito e outros. Os bens aquinhoados sempre estudaram inglês e cuidavam de debochar dos que ouviam Golden Boy e Renato e seus Blue Caps.

E terminando o começo da manhã, li o belo texto de Lula Eurico, o “burgomestre” do Arruado da Várzea, incrustado na Universidade Federal de Pernambuco, um resto do Caminho que ligava o Recife ao Engenho do Meio e o Engenho de São João, aquele que era de João Fernandes Vieira. Pois que Lula Eurico lembra, em sua crônica deste dia, que deve ter havido uma festa no engenho, nos dias seguintes à Vitória dos pernambucanos sobre os holandeses. Ele menciona que, embora os grandes beneficiários da vitória houvessem sido os proprietários, jamais deve ser esquecido que o sangue ali derramado saiu dos corpos de índios, negros, mulatos, que têm sua representação nas figuras de Felipe Camarão e Henrique Dias, André Vidal de Negreiros. Esses são muito esquecidos na historiografia e, nas aulas de história, são palavras que saem automaticamente e sem maiores comentários dos professores. É por isso são desconhecidos, que sabemos tão pouco sobre os que derramam o sangue na construção da vida do Brasil, e sabemos mais dos que saboreiam os resultados que os enriquecem. Quando não falamos sobre o povo, comum que faz a história com o seu sangue e suor, terminamos apenas por curtir as cervejas e vinhos e migalhas que caem da mesa dos construtores e mantenedores da história organizada pelos que fizeram os muitos DOPS desse país.