Próprio da humanidade inventar meios para sua preservação, ensinar o que aprendeu no ato da invenção, modificar o aprendido, aperfeiçoar o recebido. É que tem ocorrido sempre, mas não somente. Alguns aprenderam mas não transmitiram o que aprenderam ou aperfeiçoaram, interromperam o processo, ou melhor, modificaram o processo humano: tornaram seu o que era comum.
Qual o nome que tenho? Quem o pôs em mim? Porque razão escolheu este nome para marcar-me entre todos os seres? Sim, o nome que carregamos é uma marca que permite sermos reconhecidos pelos demais, mas esta marca nos foi dada por alguém que possuía um objetivo ao nomear-me. Devem ter sido essas as considerações que fizeram meu filho Isaac interpelar sua mãe, marcada om o nome do avô, Manuel. É uma tradição romana. Aprendi, que as mulheres carregavam o nome de algum ancestral. Mas, porque pus o nome Isaac em meu caçula? Quantas tradições culturais, civilizacionais em um só parágrafo: romana, judia, africano-portuguesa.
Conto histórias para meu filho dormir, então quis contar a história do seu nome. Uma história que começa em Ur da Caldeia, na Mesopotâmia, no tempo de Hamurabi. Abrão, homem de alguma posse, casado com Sara, teria tido um encontro com o seu deus pessoal que lhe ordenara abandonar a cidade, ir para o deserto com sua família. E então ele migra com a mulher, seus bois, cabras, escravos, alguns parentes. Abrão diz a Sara que seu deus lhe havia dito que teria uma grande descendência e que eles formariam um grande povo. O tempo passava e Sara não engravidava e já havia passado tempo de ela engravidar. Para agradar o marido, Sara permite que ele tenha um filho com uma de suas escravas e adota esse filho como seu. Sara não parece confiar na promessa do deus de Abrão, procura um jeito de cumprir a sua parte na promessa para a qual não fora consultada.
Uma tarde dois jovens estão de passagem e passam no acampamento de Abrão que os recebe e os trata bem. Na conversa os estranhos dizem que logo Sara engravidará e Abrão terá o filho que lhe fora prometido. Sara escuta e ri , pois entende que seu tempo de maternidade já havia passado. Os visitantes reclamam de sua pouca confiança ou fé no deus de Abrão. E seguem viagem. Algum tempo depois o corpo de Sara apresenta os sinais da gravidez. No tempo apropriado pare seu filho. Então Abrão fica muito alegre e diz que o menino que nasceu é a alegria de sua velhice, um prêmio, e o chama de Isaac. Foi pela alegria de ter um filho após os sessenta anos que eu, formado em parte da tradição judaica, resolvi chamar de Isaac o meu filho.
Poderia ter terminado neste ponto a história, mas o filho de Abrão, que então passara a ser conhecido como Abraão, tem uma vida maior que o seu nascimento. O nascimento é apenas um momento da vida que começara antes e terminará muito depois da experiência da vida. Assim continuei a história, não mais do nome, mas da vida de Isaac. O deus de Abraão cumprira a promessa, mas, diz a tradição, havia mais a ser realizado, mudado.
Quando saiu de Ur levando suas coisas, Abraão levava também seus sacrifício, costumes e, entre eles, havia um hábito de oferecer aos deuses a primícias de tudo que o crente produzia. E Abraão entendeu que tinha a obrigação de oferecer Isaac em sacrifício ao seu deus, de quem disse que ouvira a cobrança. Assim ele chamou Isaac para um passeio e resolveu matá-lo para agradar seu deus. Durante a caminhada Isaac perturbava Abraão sobre qual o animal que seria sacrificado. Eu estava contando essa parte da história quando ouvi o soluço de meu filho, estupefato com a ideia de que Isaac seria morto para a alegria do deus de Abraão. E pouco adiantou ter adiantado a história, ter dito que no último instante o deus de Abraão não permitiu que fosse consumado o sacrifício/assassinato de Isaac, que apareceu um animal e que a história apenas mostrava de como os seres humanos estavam superando uma etapa do drama, deixando de matar seus primogênitos, e que Isaac. Pouco adiantou dizer que, além de ser a alegria da velhice de seu pai, Isaac era também o sinal da libertação, da superação de uma fase antiga e o começo de uma humanidade menos sangrenta e dolorosa, embora ainda muitos sofrimentos estivessem por vir. Lembrei que só vim a entender o que viveram Abraão e seu filho após estudar um pouco de antropologia, pois teologicamente eu apenas aceitava aquela visão de um pai com uma faca na direção do filho indefeso.
Contos de fada servem para explicar o mundo às crianças, são contados por adultos que raramente compreendem o seu significado. Assim também acontece no relacionamento dos homens com os seus deuses. A tradição judaica parece ter início com a superação dos sacrifícios humanos dos seus primogênitos, como se confirma com a história central da libertação no Egito. A tradição cristã também exige um sacrifício do unigênito. As crianças sofrem muito no aprendizado dessas tradições que formam a cultura, a sensibilidade que carregam as fazem solidárias ao sofrimento de todas as crianças, de todos os humanos que construíram a humanidade.
Vez por outra, as sociedade estão governadas por adultos que não tiveram ou perderam a infância.