Estava a ler, em obra intitulada GESTOS E VOZES DE PERNAMBUCO, editado pela Universidade Federal de Pernambuco em 1970, obra do professor Luiz Delgado, no capítulo em que discute a participação de Pernambuco na Assembleia Constituinte de 1890, quando chegou ao meu conhecimento que havia neste dia, não acordara Doca Maurício, em sua casa, no Assentamento Margarida Maria, no município de Aliança.
Luiz Delgado foi professor e, também, diretor da Faculdade de Direito do Recife, pessoa que influenciou de muitas e diversas maneiras a sociedade pernambucana e brasileira. Devo tê-lo conhecido em algum momento da minha vida, pois em diversas ocasiões estive no prédio da Tribuna Religiosa, instituição que recebeu anos de sua dedicação de católico militante, homem de crença forte e humanidade desenvolvida e ainda carente de estudos, como vários outros intelectuais pernambucanos de sua geração. É necessário ter cuidado para que não nos percamos no imediato da vida.
Escrevo as palavras acima a respeito de um mestre que conheci em minhas pesquisas sobre a Igreja Católica em Pernambuco porque a minha leitura foi interrompida com a notícia da morte de um mestre que conheci uma dezena de anos passados. Mestre Doca Maurício será pouco lembrado para além do mundo que usufruiu de seus trabalhos e de sua arte. Dizia um filósofo que o nosso mundo é o mundo que nós conhecemos. E todos nós conhecemos pouco do mundo e, mesmo do nosso mundo, este que nos arrodeia, como diria Doca Maurício. Ele não escreveu nenhum livro e nada escrito, além de algumas assinaturas em declarações e recibos. Nasceu em um engenho, cresceu menino de engenho, viveu quase todas as experiências que a vida em uma fábrica de açúcar permite aos que constroem a Casa Grande, mas nela não entram. Cambiteiro, valeiro, ticuqueiro, carreiro, cortador de cana.
Os tempos industriais impuseram o dito momento de repouso, que foi um freio à ganância, esses que chamamos espaços de lazer, pois o trabalho que é realizado para além das necessidades vitais torna-se desagradável e destruidor da criatividade: perde a alegria de produzir quem não saboreia o seu produto. Em tempos mais antigos, quando a escala da produção era menor, havia mais temo para a recriação da realidade e a recreação era poética, ou seja, era uma ação de criar o desfrute e não apenas o desfrute, como é o lazer. E foi no tempo de lazer concedido pela Usina Aliança que Doca Maurício reinventou sua existência, tornando-se um artista produtor de sonhos e sons. Ainda menino, nos anos quarenta foi Dama no Cavalo Marinho, depois Galante. Aprendeu a “botar figura” e sentava no banco para entoar as Loas, as modas e canções que varavam as noites nos sítios ou em frente uma venda em uma rua no fim da cidade. Carregava na de cor, na memória e no coração, todas as conversas Mateus, Bastião e demais personagens desse teatro semiestruturado, pois que permite a participação dos que passam por ele. E Doca Maurício cresceu ouvindo os sons produzidos pelos chocalhos dos caboclos, solitários em seu retorno à casa após as conquistas realizadas nos dias de carnaval. Eram os Tempos Heroicos da construção e reconstrução da idade dos caboclos da mata, dos Matutos da Zona da Mata. Não dos “Matutos” que chegaram a governar a Província e o Estado de Pernambuco, mas dos matutos de gestos acanhados, moradores de casas pau-a-pique, com piso de barro e mobília rara, mas que saiam de suas casas para mostrar, orgulhosos e altaneiros, a arte de suas mãos de artesões e a agilidade de seus pés, treinados no piso do molhado massapê. Doca Maurício era conhecedor do maracatu, do som de suas orquestras. Era também artista do som. Membro da orquestra do Maracatu Estrela de Ouro de Aliança, Doca Maurício tocava a poica, de onde saía o lamento de dor dos cortadores de cana, no movimento de sua mão, escorregando no interior do cilindro de bambu, de madeira aproveitada das barricas do bacalhau magro que sempre foi alimento dos pobres desde os tempos da colonização portuguesa, e, mais recentemente, de plástico. A esse instrumento, que substitui a buzina, dos momentos iniciais do Maracatu, os bacanas quando o veem, dizem cuíca. Doca Maurício jamais tocou cuíca: na Chã de Camará, em Condado, Nazaré da Mata, na Avenida Dantas Barreto, no Recife, na Praça Guadalajara, em Garanhuns, em Brasília, São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Teresina, Paris, na França, sempre tocou Poica.
A morte de Doca Maurício nos impede de cumprir dois compromissos: a gravação de uma entrevista para o Ponto de Memória do Ponto de Cultura Estrela de Ouro de Aliança, na qual ficaria registrado em palavras e imagens os feitos que sua memória guardava de sua vida; o segundo era um compromisso pessoal de ir até à sua casa para conversarmos e apanhar uma dúzia de avos de suas galinhas caipiras.
O corpo pequeno e roliço de Doca Maurício, musculoso e isento de gorduras, resultado de trabalho e seriedade, às vezes fazia-me pensar no instrumento com que ilustrava a caixa, o tambor e o mineiro. Não mais ouvirei a poica do Mestre Doca Maurício, mas sempre ouvir um poica buzinando, serei testemunha da sua eternidade, com a mesma intensidade que as palavras escritas por Luiz Delgado sobre GESTOS E AS VOZES DE PERNAMBUCO. DOCA MAURÍCIO é desse ramo na nas matas dos sítios da Mata Norte.