COMO CHEGAMOS AO BICENTENÁRIO, Um percurso pessoal na compreensão da Independência do Brasil[1]
Professor Severino Vicente da Silva[2]
ORCID 000000189111409
- INTRODUÇÃO COM LEMBRANÇAS
Em pouco dias o Brasil irá comemorar o aniversário de duzentos anos de uma ação que ocorreu às margens do Riacho Ipiranga, localizado na cidade de São Paulo. Ali ocorreu o e encontro de Paulo Emílio Bregaro e o Major Antônio ramos Cordeiro com a comitiva do príncipe dom Pedro que estava retornando de Santos. Tendo recebido as cartas que lhes foram enviadas por sua esposa e regente Dona Leopoldina e o ministro José Bonifácio de Andrade e Silva, Dom Pedro. Narra Rocha Pombo[3], em sua História do Brasil, que Dom Pedro, comovido, teria dito que “é preciso acabar com isso”. Estava referindo-se ao que informavam as cartas. Diziam elas que as Cortes portuguesas haviam decidido que o Príncipe estaria destituído da Regência e que, em trinta dias, deveria estar em Portugal. Foi diante dessa situação que as cartas chegadas do Rio de Janeiro instavam que chegara o tempo de completar o processo que vinha sendo construído desde final do século XIX, a independência do Brasil. Diz Rocha Pombo[4] que Dom Pedro monta seu cavalo e conclama, informa que o Brasil estava separado de Portugal, e resume o projeto para os brasileiros, o grito de “Independência ou Morte”.
Depois de lembrar como um historiador tradicional e voltado para a organização de uma narrativa heroica e romântica da história do país, talvez eu devesse lembrar como foi-me ensinado a reconhecer-me brasileiro e a comemorar o Dia Sete de Setembro como o momento mais importante da nossa história brasileira. Comemorar o Sete de Setembro é dizer que é brasileiro e que será capaz de morrer pelo Brasil, como diz o hino que o proclamador da Independência fez, tanto a música quanto a Poesia. O Refrão que aprendi antes do que chamamos hoje de Quinta Série, diz assim “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”.
A mais antiga memória que tenho dessa data e que me liga às demais pessoas que se afirmam brasileiras, é entre as canas do engenho de fogo morto que pertencia ao meu padrinho de batismo, localizado em lugar chamado Eixo Grande. Não sei se participei da caminhada, ou se foi um sonho que tive. Ali, uma tia minha, Djanira, casada com o irmão de meu padrinho (creio que foi o casamento dessa irmã de minha mãe que permitiu que meu pai pedisse a Cazuza e sua esposa Odete, que fossem meus padrinhos) era a professora e eu devo ter, ou desejado, participar, das suas aulas. Tia Djanira fez seus alunos, formados em batalhão, como ela deve ter aprendido quando aluna, para comemorar a Independência do Brasil entre as fileiras de cana, cana que o engenho já não moía, mas fornecia para alguma usina. Brasil, professora, canavial, família, tudo isso se juntou na minha memória como o primeiro retrato que tive do Brasil independente.
Outra lembrança que tenho, é de lido e aprendido uns versos, uns versos de louvor à independência e a Dom Pedro I. Definitivamente ele era o meu herói, o libertador de minha pátria, do Brasil que eu estava cada vez amando mais. Essa lembrança é do tempo em que minha família já havia migrado para o Recife, e eu sonhava em vestir uma galante farda militar e, se fosse necessário morrer pelo Brasil.
Mas então as leituras e as experiências foram fazendo-me compreender melhor o Brasil e como ele se apresentava. Nos anos de 1960, o Recife recebeu mais uma das tradicionais enchentes do Rio Capibaribe, e que veio acompanhada de muitas chuvas. Creio que essa enchente tem uma importância muito grande na minha maneira de ver e viver o Brasil. Um ano antes, havia ocorrido o golpe realizado por civis e militares para derrubar o governo do presidente João Goulart, e diziam que fizeram tal ação para salvar o Brasil do comunismo e da corrupção. Até mesmo, nos meus simples catorze anos, participei da campanha “Dê ouro para o bem do Brasil”. Então vieram as chuvas, a enchente de 1965, e vi que no Brasil, havia muitos brasis. O Recife havia crescido e poucos haviam notado que crescera na beira do rio, formando a “população ribeirinha” como falava o então prefeito da cidade[5]; o Recife havia crescido com casas erguidas nos morros e barreiras que margeiam a cidade, casas frágeis, com pouca sustentação e que desabaram. E o “Ouro para o bem do Brasil” não apareceu para cuidar do povo brasileiro. E veio a cheia em 1975 e o drama se repetiu. Não se cuidava, ou melhor não se importava, que o crescimento econômico estava produzindo pobres.
Como chegamos a ser, em 2022, quando completamos dois séculos de nação independente, sermos tão ricos e com tantos pobres, com gente sem ter alimento?
- O MOMENTO DA INDEPENDÊNCIAEO PRIMIRO IMPÉRIO
Quando Dom Pedro I proclamou a nossa Independência de Portugal, a nossa riqueza era produzida pelo trabalho de escravos, de pessoas que eram compradas na África e trazida para o Brasil. Naquele ano de 1822 a população do Brasil era de 4.396.132 habitantes, sendo que 1.107.389 eram escravos. Quer dizer que livres eram 2.488.743, a que se somavam cerca de 800.00 “índios não domesticados”. O novo Estado assentava-se nas mesmas bases que foram firmadas pelos portugueses enquanto foram donos do Brasil: o apoio dos grandes proprietários. Isso significa dizer que não ocorreram grandes mudanças em relação ao passado, foi quase como uma transferência de herança do pai – Dom João VI de Portugal, para Dom Pedro, seu filho, agora proclamado Imperador do Brasil. Manteve-se o modo de produzir riqueza, tendo a escravidão dos africanos como base trabalhadora, uma pequena parte da população branca dedicada ao comércio e, um menor número ainda de proprietários que governavam o Brasil.
- PREPARANDO A INDEPENDÊNCIA
Mas o ato ocorrido “às margens plácidas” do Ipiranga não foi resultado apenas das vontade e decisões de Dona Leopoldina e José Bonifácio, o que ali aconteceu foi uma culminância de ações realizadas por homens e mulheres desde o século XVIII, e nós estudamos isso quando mencionamos a Conjuração Mineira de 1879, a Revolta dos Alfaiates, na Bahia de 1889, que já demonstravam insatisfação dos proprietários de minas de ouro, e dos artífices soteropolitanos com o tratamento que a Coroa Portuguesa dedicava ao Brasil. Além disso, as mudanças políticas ocorridas na Europa desde a Revolução Francesa que pôs fim à monarquia absoluta naquele país, e desestabilizou a tradição forma de governo dos europeus. As guerras decorrente desse cenário provocou a crise do império espanhol e as consequentes independência dos povos americanos que estavam dominados pela Espanha. A Independência do Brasil, além de ser um anseio dos brasileiros, era também a consequência das modificações políticas e econômicas vivenciadas pela comunidade internacional. Nenhum país está isolado dos demais.
Foram as mudanças europeias que trouxeram a família real portuguesa para o Brasil, mais especificamente para o Rio de Janeiro, pondo fim à condição de colônia vivida pelo Brasil. Foi a tentativa que recolonizar o Brasil que levou a esposa do príncipe regente a aconselhar e direcionar Dom Pedro para tornar o Brasil independente, “antes que um aventureiro lance mão d coroa”, como aconselhara Dom João VI ao seu filho, quando foi forçado a retornar a Portugal em 1821. Dom João sabia que era inevitável que Portugal viesse a perder a aliança com o Reino do Brasil, criado por ele em 1815. Ele teve que sufocar os anseios de independência de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, em 1817. Foram muitos os enforcados e arcabuzados, foram muitos os mártires da liberdade, e muitos foram enforcados no que hoje chamamos de Praça da República, onde está localizado o Palácio Campo das Princesas. mas durante alguns anos era conhecida como Campo dos Mártires. A repressão à Revolução de 1817 foi muito exemplar, uma ação para que os brasileiros não voltassem a pensar em independência. Entretanto o movimento histórico é irreversível e, entendendo o que estava a ocorrer, é que Dom João VI deu aquele conselho político ao seu filho, que o seguiu e tornou o Brasil uma monarquia típica da Europa.
- O SANGUE DERRAMADO PELA INDEPENDÊNCIA
Uma nação é forjada pelo heroísmo diário de cada cidadão, entretanto, estamos sempre a estudar a história dos heróis que estiveram nos campos de batalhas. Quando estudamos a história de nosso país parece que nem tivemos os heróis anônimos que trabalham diariamente, nem mesmo os heróis dos campos de batalhas, pois elas não aprecem em nossos currículos, em nossas aulas de história. Alguns chegam a pensar que somos um povo pacífico e que nunca fez guerra nem derramou sangue pela terra em que vive e constrói a sua vida e de sua família. No caso de Pernambuco, a semana de 6 a 10 de outubro deveria ser de festejos, pois naquela semana, no ano de 1821, foram expulsos de Pernambuco os soldados portugueses e, depois daquela semana, nenhuma autoridade portuguesa mandou em nosso Estado. Estávamos independentes, e isso foi obra dos habitantes da Mata Norte, liderados pela Câmara de Goiana, Nazaré, Olinda. Foi assim que começamos a ser independentes.
Quando, em setembro de 1822 Dom Pedro levantou o brado da independência, portugueses, em diversas províncias levantaram-se contra e, tivemos a Guerra da Independência e suas batalhas. Uma delas ocorreu nos limites das províncias de Piauí, Ceará e Maranhão, e é conhecida como a Batalha de Jenipapo, nas margens do riacho do mesmo nome, no ligar Campo Maior, em 13 de março de 1923. Mais de duzentos brasileiros morreram nessa batalha que derrotou exército português comandado pelo Major João Fidie.
“Vaqueiros, roceiros humildes, que lutaram sob o comando dos bravos Luís Rodrigues Chaves, João da Costa Alecrim, Inácio Francisco de Araújo Costa, Salvador Cardoso de Oliveira, Alexandre Nery Pereira Nereu, Pedro Francisco Martins, Simplício José da Silva e José Pereira Filgueiras. Eles permaneceram durante muitos anos no esquecimento. Apenas algumas toscas pedras marcavam o lugar das sepulturas com restos desses valentes, mortos sem que deixassem à posteridade ao menos os modestos nomes.”[6]
Foi um número maior do que os mortos nas batalhas baianas que duraram um ano de quatro meses, que teve 150 mortos, e que encerrada em julho de 1823. Na luta pela independência da Bahia, duas mulheres firmam-se como heroínas: Maria Quitéria, uma jovem mulher que passa a usar roupas masculinas, entra no exército brasileiro e recebida vitoriosa com a tropa na cidade de São Salvador. A outra mulher é a Irmã Maria Angélica, superior do convento da Lapa, onde morreu na defesa da independência.
Teremos mais histórias como essas à medida que pesquisarmos mais o povo brasileiro, não apenas os que governam.
Mas, a separação definitiva veio em abril 1831, com o Imperador tendo que renunciar o poder, uma vez que o povo do Rio de Janeiro levantou-se contra as suas atitudes autocratas, impondo portugueses como ministros em seu governo. Na primeira semana de abril de 1831, a população, em revolta, recebeu o apoio da tropa que havia sido mandada a reprimi-lo, o coronel Francisco de lima e Silva, colocou o exército ao lado do povo, e o imperador foi obrigado a renunciar e voltar para Portugal. O mesmo povo que pediu em janeiro de 1822 para que ele ficasse no Brasil, desobedecendo as ordens portuguesas, em 1831 o obriga a voltar para Portugal, cuidar dos seu interesses, que era o bem de Portugal, o trono de sua filha Dona Maria da Glória.
- A INSEGURANÇA DOS PRPRIETÁRIOS
A partir de 7 de abril de 1831, sem um rei que simbolizasse a união da nação, o Brasil foi governado por Regentes escolhidos pelo Parlamento, e eles se viram diante do desafio de manter o país unido nas bases que foram definidas nos primeiros anos após a independência. Dom Pedro reagiu violenta e raivosamente contra Pernambuco, a única província que colocou em dúvida a Carta Constitucional que ele impusera à nação. A Confederação do Equador, de 1824, foi um momento político que pôs em risco a sua autoridade, que alguns ainda hoje preferem dizer que foi um movimento separatistas, mas o sentimento dos pernambucanos era de promover o respeito à constituinte que fora eleita e evitar a concentração de poder autocrata, que teve o nome de Poder Moderador. Nos dez anos que se seguiram à saída de Dom Pedro, o Brasil assistiu revoltas lideradas pelos poderosos regionais, como a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul; a Sabinada, na Bahia; as Revoltas Liberais de São Paulo e Minas Gerais; mas também o clamor dos mais pobres como a Cabanagem do Pará e a Balaiada no Maranhão. A maior parte desses movimentos apontam para a insatisfação e temor dos proprietários diante o poder concentrado no Rio de Janeiro, e eles foram pacificados com maior ou menor grau de conversação política; entretanto, os movimentos de caráter mais popular e formado a partir dos escravos e ex escravizados, como a Balaiada e a Cabanagem, receberam repressão terrível. No caso da cabanagem, ocorreu o massacre de quase metade da população da Província, isso para garantir que o Estado seria o Estado dos proprietários de terra e de gente.
Finalmente o acordo chegou com uma ação parlamentar que concedia maioridade ao adolescente Pedro, coroado imperador em 1840. Mais alguns anos de negociações e, finalmente, em 1851, foi feita a Lei de Terras, que impedia o acesso à posse de terra a quem não tivesse fortuna monetária. Formava-se, definitivamente a exclusão dos brasileiros pobres e, dos escravos que viessem a ter liberdade.
- O GOVERNO DE PEDRO II, PERÍODO DE PAZ
Na segunda metade do século XIX o Brasil foi introduzido, definitivamente na Revolução Industrial, no mundo moderno, não como protagonista, mas como personagem secundário que recebeu, ao seu tempo os benefícios da industrialização. Essa modernização pode ser verificada com a adesão ao sistema Métrico Decimal, e o povo desconfiado não acreditava nas balanças que passam a ser utilizadas nas feiras, por isso a Revolta dos Quebra Quilos, no sertão da Paraíba; o Ronco da Abelhas, em Paudalho e Nazaré da Mata, Pernambuco; o Censo para contar a população, que o povo entende que é para re-escravizar os que haviam conseguido a Carta de Alforria ou descobrir escravos fugidos. A tudo isso o povo excluído resistia. Finalmente, o povo chamava a Lei de Terras de a Lei das Cercas, porque a terra começou a cercada e impedia o povo ter acesso aos mananciais de água, o que fez os períodos de estiagem, as secas geográficas, tornarem-se Secas Sociais, nas quais o povo morria de sede olhando os açudes. Nesse período ocorreu a grande Peste de 1866, data que vocês podem ler em alguns cemitérios criados então, como o de Nazaré da Mata. Em 1877, milhares de brasileiros morreram de fome nos sertões de Pernambuco. Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Alguns foram enviados para a Amazônia, e tornaram-se trabalhadores nos seringais e, enfrentando os sindicatos norte-americanos, tornaram o Acre parte do Brasil.[7] Esse foi também um período de guerras entre as famílias proprietárias pela posse de suas terras, e dessa disputa, parte do povo se torna cangaceiros, prestando serviço a este ou aquele proprietário. Alguns cangaceiros resolveram lutar por conta própria, e foram perseguidos pela Guarda Nacional, que era dirigida pelos senhores de terras. É daí que vem o hábito de chamar “autoridades” de coronéis. E na base de tudo, está o trabalho dos negros escravizados, os mulatos, os morenos, os curibocas, os caboclos e os brancos pobres, todos a serviço dos proprietários.
Nas capitais a vida moderna parecia tornar-se mais comum, com a chegada dos trens, facilitando o transporte do café, no sudeste e o açúcar no Nordeste, a iluminação noturna das ruas, a introdução de serviços de água e esgotos e, não vamos esquecer, a vinda de milhares de europeus desempregados e destituídos de tudo, que imigraram para o Brasil, como uma alternativa para a mão de obra escrava que, os proprietários sabiam, que logo seriam libertados, como o foram em 1888, após a criação de várias leis, criadas pelo parlamento formado de escravistas, que objetivavam postergar a Abolição. As leis do Sexagenário, lei do Ventre Livre são demonstração da força dos escravistas na luta contra os abolicionistas Joaquim Nabuco, Luiz Gama, José do Patrocínio, Cruz de Rebouças e tantos outros.
Mas se os anos de 1870 foram de luta abolicionista, foi também a década do Guerra contra o Paraguai, uma guerra que, entre suas consequências está a participação dos negros e índios os campos de batalha, em defesa da pátria brasileira como sua. Muitos negros foram à guerra sob a promessa da liberdade, muitos índios e pobres alistaram-se nos batalhões de Voluntários da Pátria, e nem sempre tiveram uma retribuição por essa dedicação e esse amor a ela devotada. A Guerra do Paraguai alçou o exército como a principal arma da defesa nacional, formada por homens do que chamaríamos de classe média, e do povo comum. A participação dos mais pobres, inclusive de negros escravizados, na guerra contra o Paraguai levou o Exército a se recusar a manter-se como “capitão do Mato”, o exército recusou-se a continuar perseguindo os negros que fugiam do cativeiro. Fazia eco ao verso de Castro Alves:
Auriverde pendão da minha terra,
que a brisa do Brasil beija e balança,
estandarte que a luz do sol encerra
e as promessas divinas da esperança.
(…)
tu que fostes hasteados por heróis após a guerra,
antes fosses roto na batalha
que servires a um povo de mortalha.
Algum tempo depois, com os debates nas ruas, no Parlamento, nos jornais, com a pressão internacional, veio a lei Áurea, de 1888, não como unanimidade, pois vários deputados, como Francisco de Caldas Lins, Barão de Araçagi, representante de Pernambuco, votaram contra a Lei Áurea preparada pelo pernambucano João Alfredo. (GOMES: 2022. P.46)
Mas como nós sabemos, o fim da escravidão, tornou os negros livres, mas sem acesso aos bens que produziam, porque não houve uma política de integração dos negros na sociedade: não foram criadas escolas, e continuaram o uso das leis do tempo da escravidão.
- A REPÚBLICA – Resumos dos primeiros anos
Um ano depois da festa da Lei Áurea foi proclamada a República, que ficou quase como uma continuidade da monarquia, agora sem o imperador. Foi feita uma nova Constituição que garantia os direitos para os cidadãos, mas o poder não foi redistribuído, pois a República se organizou de modo a manter os grandes proprietários no poder. Ocorreram algumas revoltas, como a liderada por setores da Marinha, e no Rio Grande do Sul, uma Revolta Federalista. Aconteceu que alguns setores populares estavam insatisfeitos com os rumos da política, e no interior da Bahia Antônio Conselheiros organizou a Vila do Senhor Bom Jesus, em Canudos, no Raso da Catarina. Essa reação do povo foi muito reprimida pela República que enviou o Exército para destruir a cidade.
Desde meados do século XIX até 1936, ocorreu o ciclo do Cangaço, que demonstrava a ausência do Estado para proteger os médios e pequenos proprietários e os trabalhadores rurais. Os cangaceiros eram originários desses grupos desprotegidos e reagiram de forma violenta à violência dos grandes proprietários e do Estado ausente. Estamos falando do Sertão, distante das capitais. Mas, também nelas os mais pobres não eram percebidos como cidadãos.
No início do século XX ocorreu uma nova arrumação no sistema econômico mundial e, mesmo sociedades que não participavam como protagonistas da Revolução industrial sofreram o impacto dessas mudanças. Capitais portuárias como Rio de Janeiro, Salvador e Recife tiveram que promover modificações técnicas nos seus portos e, evidentemente essas modificações mudaram o visual dessas cidades, pois prédios coloniais e do século XIX foram derrubados para a construção de avenidas mais largas, espaçosas para os novos meios de transportes, além de apressarem o processo de modernização gerado pela industrialização. A renovação dos centros urbanos tornou pública a situação na qual viviam os ex escravos e seus descendentes que não foram incorporados à vida política, social e econômica da República. As condições de suas moradias, antigos prédios e sobrados, agora pardieiros, em condições precárias de saúde e higiene eram focos de doenças, agravadas pela ausência de saneamento: coleta de dejetos abriam caminhos para doenças como a Febre Amarela que, agregadas à ausência de uma educação, serviram como estopim para a oposição aos governos que intervinham a serviço da saúde pública, o que ocasionou a “guerra da vacina”. A rejeição à forma de como eram tratados os pobres que viviam nos lugares escolhidos para serem “modernos” tomou forma em embates com a polícia como a Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro, e o surgimento de valentões, capoeiristas que dominavam as ruas do Recife. A insatisfação dos pobres sempre foi tratada como um “caso de polícia”. Os confrontos e lutas continuaram ao longo do século XX, e eles ocorreram de maneiras diversas e, na música e danças populares temos os grandes exemplos, pois foi neles que a criatividade do povo brasileiro apareceu no Frevo, nas estreitas ruas do Recife, no Samba, nas favelas do Rio Janeiro.
Faz cem anos que o Brasil realizou uma grande festa para celebrar os cem anos de independência, uma festa que contou com a coordenação geral do ex presidente Epitácio Pessoa, e manteve o Brasil de então em destaque mundial que ele adquiriu na Conferência de Haia (1907) pela ação de Rui Barbosa, e nas negociações após a Primeira Guerra Mundial (Paz de Versalhes, 1919), com comitiva liderada pelo mesmo Epitácio Pessoa.
Enquanto uma nação surgia, travando um embate para não sucumbir à fome, trabalhando sem proteção do Estado, construindo suas moradias nas margens dos rios, nas encostas das ladeiras e morros, o “desejo de conciliação” que sempre aparece nas elites quando elas percebem que as mudanças são inevitáveis, as obrigou a fazer o reconhecimento de direitos sociais e políticos como o Voto Feminino, as Leis trabalhistas. Apenas após 1930 é que a elite governamental admitiu esses direitos, mas, uma vez mais, não cuidou de criar as condições necessárias para que esses direitos fossem usufruídos pela população.
A partir de 1939 foi instaurada uma ditadura que durou até 1945 e estabeleceu formas de controle do pensamento, da criatividade, ao mesmo tempo em que estabelecia as bases das relações de trabalho, com deferência especial para o grande capital. A Segunda Guerra Mundial, iniciada na Europa, deixou claro que parte da elite detentora do capital cultivou simpatias pelos regimes totalitários nazifascistas da Alemanha e Itália. A influência da ditadura representada por Getúlio Vargas e pelo interventor Agamenon Magalhães, em Pernambuco, é sentida em nossos dias, pois os que aspiram ser ditadores estão sempre a utilizar dos processos democráticos com o objetivo de destruir a democracia.
- SÉCULO XX: segunda metade
Após o final da Segunda Guerra Mundial novos rumos foram trilhados pelas nações: os países europeus encaminharam-se para uma vereda na qual o capitalismo aceitou a aplicar algumas das teses socialistas, o que gerou um sistema reconhecedor de direitos sociais, fazendo surgir a Social democracia, o Estado do Bem Estar Social, para barrar as tendências totalitárias contra as quais lutara; nações asiáticas e africanas floresceram no processo de descolonização, fazendo surgir novos Estados; na América Latina, procurando evitar a sedução dos regimes ditos comunistas, foram incentivadas iniciativas para fazer prosperar o capitalismo na região, o que formarem-se estados populistas nas frágeis democracias.
No Brasil, com parte de seu território marcado por longas estiagens, fenômeno geográfico das secas, deu-se início ao processo de industrialização tendo por base a Companhia Siderúrgica Nacional[8], em Volta Redonda, RJ, o fortalecimento de São Paulo como polo industrial, a criação da Petrobrás e outras empresas estatais para assegurar a entrada do Brasil como parceiro da economia mundial e liderança desse processo na América Latina. E, como símbolo dessa época desenvolvimentista: a construção de Brasília. O Nordeste viu-se envolto com a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste[9]. Mas todas essas mudanças foram realizadas sob a direção dos descendentes dos senhorios de terra e de gente. Foram mudanças superficiais e que não atingiram o âmago da nação. O temor de perder o controle da condução da sociedade, levou as elites econômicas e sociais, também intelectuais, a convidar os militares para dirigir o país.
5.3 O GOLPE DE 1964 e a ditadura
Assim nasceu o golpe de 1964, que se apresentou como uma revolução e assim se fez chamar nos livros didáticos, os que dão início ao processo de formação nas escolas. Então, para atender as necessidades do comércio e da indústria, foram criadas escolas públicas para o atendimento e ensino dos filhos dos trabalhadores. Até então eram poucas as escolas públicas, e elas atendiam principalmente os filhos da classe média. A expansão numérica das escolas públicas acarretou o declínio da qualidade de ensino. O retorno ao ensino de boa qualidade nas escolas públicas é hoje a principal luta dos professores, mas como os gestores públicos – prefeitos, governadores – e os legisladores demonstram interesse secundário com a educação escolar, essas escolas sempre apresentam carências, algumas funcionado sem banheiros, água, biblioteca, teatro e área de lazer. Tudo isso acompanhado com os baixos salários que recebem os que se dedicam ao trabalho, quase missionário, de fazer educação.
Foram duas décadas de ditadura, com alguns ganhos e muitas perdas; uma grande perda de tempo que já parece esquecido. Foram tempos dolorosos, a Brasil parecia que iria engrenar no processo virtuoso do crescimento, mas esbarrou na tradicional gula pelo poder econômico e político. Grandes projetos foram postos em prática – Usina de Itaipu, estrada Transamazônica e, contudo, o Brasil saiu mais pobre, mais endividado da experiência ditatorial. Alguns, contudo, viram seu patrimônio pessoal crescer, enquanto as favelas se multiplicavam nas grandes e médias cidades e nas periferias de algumas pequenas.
Interessante é que foi durante a ditadura que se viveu com algum sucesso o debate sobre os Direitos Universais do Homem, debate necessário para condenar as práticas de torturas contra os que se levantaram contra a ditadura. No mesmo ano em que é instituído a lei maior da ditadura, o Ato Institucional de número 5, começou o grande debate sobre a Carta da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos. A sociedade motivou-se sobre o assunto, especialmente a classe média quando percebeu que seus filhos eram contra a ditadura e estavam sendo perseguidos e mortos, ora nas ruas, ora nos quartéis. Enquanto a polícia perseguia apenas os pobres, a elite e os classe média não percebiam o que acontecia. Como atualmente, poucos se importaram com as torturas que nunca deixaram de acontecer em algumas partes do sistema. Aliás não parece ser à toa que hoje haja liberação de armas para caça, como se houvesse tantos animais em nossas florestas devastadas e queimada, elas que nunca tiveram leões, elefantes, hipopótamos e outros cujas mortes serviram para o prazer dos europeus na África.
5.4 FINAL DO SÉCULO XX E INÍCIO DO SÉCULO XXI
O esgotamento da política ditatorial e o apoio perdido internacionalmente, forçaram os militares entregarem o poder, e o fizeram de modo relutante, e em 1985 o Brasil recomeçou a construção de uma sociedade democrática. Vários governos, eleitos diretamente pelo voto popular, esboçaram e realizaram ações que promoveram algumas inserções das classes mais pobres no mercado de trabalho, nas universidades públicas pelo Sistema de Cotas, que agora faz dez anos; e por programas de financiamento em universidades e faculdades particulares fez crescer o número de pessoas com educação universitária, embora não tem sido solucionado a questão de oferta de educação básica para toda população. Com muito esforço os canais de televisão começam a apresentar um quadro de repórteres mais colorido, como é a população brasileira, mas este movimento veio a tornar explícito o racismo estrutural de nossa sociedade, um racismo que sempre existiu e que sempre foi negado. E se ainda não foram integrados os negros e pardos, menor ainda tem sido a integração dos povos originários.
- CONCLUINDO DE MANEIRA INCONCLUSA
Neste segundo centenário da Independência do Brasil, não observamos uma preparação alegre para os festejos de 7 de setembro, como ocorreu no primeiro Centenário. Mais que nunca a sociedade brasileira está dividida e em dúvida sobre o que ela é, o que ela deseja ser. O comportamento da autoridade maior do país não é de organização coletiva capaz de unir os brasileiros em uma família mítica. Trocou-se o mito coletivo da nação pelo mito privado de uns poucos favorecidos, que parece ter os demais brasileiros como inimigos a serem eliminados. Chegamos ao Segundo Centenário sem uma maioria que assuma a nação com todos; continuamos sob a direção de uma minoria que desdenha do povo, que o deixa famélico para melhor manipulá-lo, como também manipula partidos políticos e políticos tíbios que evitam dizer o que pensam. Mas continuaremos, em nossas escolas a esclarecer que além das aparências, o Brasil há de contar sua história com a história de todos que o fazem, não um gigante “deitado eternamente em berço esplêndido”, mas um povo que luta, cheio de esperança com a “clava forte da justiça” pois os filhos do Brasil não fogem à luta, no amor e na defesa da Pátria Amada. E nossa pátria precisa de carinho, não de guerras, não de armas. Nossa pátria, nossa nação, carece de livros, bibliotecas, laboratórios de pesquisa e estudo.
FELIZ FESTA DO NOSSO BICENTENÁRIO.
BIBLIOGRAFIA
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Batalha de Jenipapo – https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_do_Jenipapo visto em 05/07/2022
[1] Palestra dita no Erem Professora Benedita de Moraes =, Macaparana, PE. Agosto de 2022, e no Colégio Santa Emília, Olinda, em Setembro de 2022,
[2] PHD em História pela Universidade Federal de Pernambuco, Professor Associado III, Departamento de História da UFPE
[3] ROCHA POMBO, José Francisco da. História do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos. 14ª edição. 1967.
[4] Rocha Pombo viveu entre 1857 e 1933, tendo experimentado o final do Império e o início da República, inclusive os festejos do Centenário da Independência do Brasil.
[5] Augusto Lucena, que havia sido eleito vice-prefeito com Pelópidas Silveira, assumiu a prrefitura da cidade após a cassação do mandato do prefeito, acusado de ser comunista.
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_do_Jenipapo
[7] PINHEIRO, Francisco José. Ceará: Seca e Migração. Análise histórica da incorporação do Ceará como fornecedor de mão de obra ao mercado Capitalista in A Igreja e a Questão Agrária no Nordeste, subsídios históricos , SILVA, Severino Vicente da (organizador). São Paulo: Edições Paulinas, 1986. [23-30]
[8] A Companhia Siderúrgica Nacional foi criada em 1941, como parte da colaboração do governo estadunidense no esforço de guerra contra as forças do nazifascismo.
[9] A SUDENE foi criada em 1959 com objetivo de integrar o Nordeste no processo industrial brasileiro. Tem com fundador o economista paraibano Celso Furtado